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Espanhóis campeões da Eurocopa reforçam debate sobre racismo no futebol

Transformação das sociedades em caldeirões multiculturais mostra a dificuldade dos países de lidar com os casos de racismo

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Lisboa

O craque Nico Williams, autor do gol que abriu caminho para o título europeu da Espanha na final contra a Inglaterra, passou a semana como "trending topic". Enquanto seus vídeos com gols e dancinhas eram reprisados nas redes sociais, influenciadores de futebol discutiam sua possível transferência para o gigante Barcelona. A multa contratual a ser paga ao Athletic de Bilbao, onde ele joga atualmente, chegaria perto de 60 milhões de euros (R$ 350 milhões).

Dois anos atrás, Williams também foi assunto nas redes sociais, mas por razões sórdidas. Um vídeo de um torcedor proferindo ofensas racistas contra o craque, acompanhadas de gestos, viralizou no Instagram. A La Liga, entidade que organiza o campeonato espanhol, foi à Justiça. A polícia escrutinou os perfis do ofensor e concluiu: "Do estudo das redes sociais do denunciado parece desprender-se que o mesmo não é uma pessoa que pretenda incitar ao racismo, ou que os gestos realizados pretendam alcançar esse fim." O caso foi arquivado.

Nico Williams (dir.) comemora título da Eurocopa junto com companheiros da Espanha

Os dois momentos de Nico Williams, que aos 21 anos é um dos talentos mais promissores da nova geração, ilustram questões de enorme atualidade na Europa: a transformação das sociedades em vibrantes caldeirões multiculturais —e a dificuldade dos países, incluindo seus sistemas judiciais, de lidar com os casos de racismo. O futebol, esporte mais popular do continente, tem sido uma arena privilegiada para essa discussão política, da mesma maneira que o boxe provocou um debate sobre racismo e direitos civis nos Estados Unidos dos anos 1960.

Um momento precursor da cena atual foi a Copa do Mundo de 1998, em que a França foi campeã com um time que expressava a diversidade racial do país. O líder da equipe era o craque Zinedine Yazid Zidane, um francês de origem argelina. Ficou famosa uma frase do político Jean-Marie Le Pen, que dizia que os franceses não se sentiam representados por sua seleção por ela ter "um excesso de jogadores de cor". A filha de Le Pen, Marine, é hoje a líder da ultradireita francesa, e tanto Zidane quanto Kylian Mbappé, o craque da geração atual, são opositores notórios do partido Reunião Nacional.

A França que disputou a Eurocopa tinha oito negros entre seus onze titulares. Os jogadores brancos ainda predominam na seleção espanhola, mas os dois craques decisivos na campanha vitoriosa na Alemanha são negros. O ponta-direita Lamine Yamal, de 17 anos, e o próprio Nico Williams, que joga pela esquerda. Na Copa do Qatar, em 2022, a Espanha mostrou um futebol de passes certeiros, mas com muita dificuldade para chegar ao gol. Com seus dribles desconcertantes, assistências e finalizações, Yamal e Williams deram ao time a objetividade que faltava.

O tema da imigração é forte na Espanha atual porque o país, assim como Grécia e Itália, situa-se na rota do Mediterrâneo, como é chamado o percurso dos imigrantes que saem da África de barco para tentar a vida no sul da Europa. Os pais de Nico Williams percorreram essa rota. Saíram de Gana, atravessaram o deserto do Saara sob um sol de quase 50 graus e entraram em território europeu por Melilla, enclave espanhol no norte da África. Na ocasião, foram aconselhados a mentir sobre a nacionalidade. Disseram que vinham da Libéria, que estava em guerra civil –e assim conseguiram o status de refugiados.

"A vitória da Espanha na Eurocopa transformou Nico Williams e Lamine Yamal em ídolos, o que é importantíssimo no combate ao racismo no país", diz Esteban Ibarra, líder da ONG madrilenha Movimento Contra La Intolerancia.

Autor de vários livros sobre o tema, o espanhol Ibarra acha que o combate ao racismo no futebol começa pelas torcidas organizadas: "Elas são incubadoras de ideias intolerantes, e os clubes estão cientes disso".

No episódio de racismo mais famoso contra o brasileiro Vinicius Junior, que resultou na punição de seus perpetradores, militantes do partido Vox, da ultra direita espanhola, recrutavam filiados em tendas à saída do estádio Mestalla, em Valência.

Os pais de Nico Williams representam o tipo de imigrante que o partido Vox quer combater: os que chegam sem papeis e tentam se legalizar a posteriori. No dia em que a Espanha eliminou a França na semifinal da Eurocopa, o deputado Jorge Buxadé, eleito pelo Vox ao Parlamento Europeu, postou no Instagram uma foto em que um jogador espanhol, branco, submete um jogador francês deitado no chão, negro. A imagem, de óbvio cunho racista, provocou intensa polêmica nas redes sociais. Na caixa de comentários, seguidores de Buxadé repetiam o slogan: "España cristiana, no musulmana".

Se Nico Williams for contratado pelo Barcelona, o time azul e grená repetirá em suas fileiras a dupla que puxou o ataque da Espanha na Eurocopa. Buxadé é torcedor do Espanyol, clube da mesma cidade, recém-promovido à primeira divisão. Em suas idas ao estádio, que costuma documentar em selfies nas redes sociais, Buxadé terá a oportunidade de ver a dupla Nico Williams e Lamine Yamal jogando contra o seu time.

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