Identidade forjada justifica
hegemonia de SP, diz Glezer
Nome:
Raquel Glezer
Idade:
55 Cargo: diretora do Museu Paulista (Museu do
Ipiranga)
Especialidade: historiadora, livre-docente, professora
de teoria da história e metodologia da história
da Universidade de São Paulo
Obras relacionadas ao tema: "Chão
de Terra: um Estudo sobre São Paulo Colonial",
tese de livre-docência, "As Transformações
da Cidade de São Paulo na Virada dos Séculos
19 e 20", em Cadernos de História de São
Paulo" (Museu Paulista da USP, vol. 3, 1994-1995)
|
O
Brasil prepara-se para comemorar 500
anos; São Vicente, primeira vila paulista, completou
468 em janeiro. Mas só no final do século passado
criou-se a imagem que se faz de São Paulo hoje_e que
ajuda os paulistas a manter a postura de hegemonia política
e econômica no país.
Em entrevista à Folha, a historiadora Raquel
Glezer, diretora do Museu Paulista, fala sobre esse processo
de construção de identidade, que teve na figura
idealizada do bandeirante a imagem do desbravador responsável
pela unidade territorial brasileira.
No século 19, em que o mundobuscou encontrar sentido
para a palavra nação, São Paulo ganhou
importânciaeconômica e política. De uma
área periférica nos períodos colonial
e imperial, a província passou, com a expansão
cafeeira, a exercer papel central na vida política
e econômica do país, em especial após
a proclamação da República.
Intelectuais paulistas buscaram em fatos passados elementos
que justificassem o novo poderio. Para Glezer, o mito do paulista
empreendedor persiste hoje _não como leitura do século
16, mas como auto-imagem de São Paulo.
Ironicamente, esse passado glorioso, que deu tanto trabalho
para ser construído ideologicamente, não foi
preservado fisicamente. Descrita nos "Tristes Trópicos"
de Lévi-Strauss como fadada "a ser sempre nova,
sem dimensão temporal, sem vestígios, sem madureza",
a cidade destruiu sistematicamente seus marcos históricos
e referenciais.
Folha - O que é a efeméride dos 500 anos?
Raquel Glezer - É a efeméride do Descobrimento,
isto é, da tomada de posse oficial do território
que existe no Atlântico pelo reino de Portugal. Desde
o século passado há pesquisas que discutem a
chegada dos europeus e se as terras foram encontradas antes
de Cabral. Mas é a tomada de posse do território
pelo reino de Portugal em 1500 que se comemora. Nos 400 anos
do Descobrimento, o nível das comemorações
foi menor. A grande celebração do Brasil sempre
foi a Independência.
Folha - Como a história desses 500 anos está
sendo recontada?
Glezer - Se pensarmos em termos de estudos universitários,
o processo de exploração do continente americano
faz parte da expansão européia do período
moderno, do contato dos europeus com outros continentes, outras
populações e das reações que esses
contatos provocaram. Reações de estranheza e
de medo, mas também de enternecimento. Nas cartas e
narrativas do período inicial do Descobrimento, nós
encontramos as duas coisas: tanto o "Que sociedade idílica!"
quanto o "Que sociedade monstruosa!", de homens
sem lei, sem rei e sem fé.
Folha - A visão hegemônica desse período
caminha para uma condenação moral dos portugueses?
Glezer - É difícil falar em "condenação
moral", pois a história não deve fazer
julgamentos de valor. Por definição, ela é
uma forma de interpretação que o presente faz
sobre o passado. Eu não sei se para os homens dos séculos
15, 16 e 17 as condições de percepção
de realidade de comportamento com o outro são compatíveis
com as nossas. As nossas sociedades _pelo menos as ligadas
à tradição européia_ passaram
pela Revolução Francesa (1789). Antes disso,
eram outras as regras, outras as formas de pensar.
Folha - Pensando no caso específico de São
Paulo: como o historiador faz para pesquisar uma cidade que
tem quase 450 anos de existência, mas que não
deixou nas ruas quase nenhum traço desse passado?
Glezer - Se você andar bem devagar, com muita
atenção, vai encontrar os marcos. Muito esparsos,
muito isolados, sempre muito precários. É triste
ver como nós destruímos nosso processo de ocupação
do espaço, nosso processo de formação
social.
Folha - O que possibilitou que uma área urbana
tão reduzida como era São Paulo tivesse tido
um crescimento explosivo no final do século 19?
Glezer - Em 1890, o espaço explode. A cidade
cresce em função da lavoura cafeeira, da estrada
de ferro e da entrada de população estrangeira.
A partir de 1900, ela cresce também em função
de deslocamento da população nacional.
Folha - Migração interna?
Glezer - Não chega a ser migração
interna. A partir de 1890, os posseiros que viviam nas margens
da cidade sofrem um processo de expulsão e são
forçados a ir para a área urbana. A cidade cresce
porque a população liberta também se
desloca para as áreas urbanas, onde é mais fácil
negociar suas condições de trabalho.
Folha - Como os intelectuais paulistas reelaboraram
um passado glorioso para São Paulo?
Glezer - O último quarto do século 19
se caracterizou por uma preocupação com o próprio
passado em todos os países da civilização
ocidental.
Até a República, São Paulo era área
periférica em relação ao poder central.
O que se fez foi olhar para o passado e procurar por pontos
de amarração com o presente. Isso foi muito
característico da época e é conhecido
como invenção da tradição, das
representações, criação de identidade
e imaginário.
O estudo da criação do passado colonial glorioso
paulista é muito interessante porque, quando contraposto
aos estudos sobre o Nordeste e o Rio, percebe-se que cada
área cria a sua identidade.
Folha - De onde os republicanos partiram para construir
o passado glorioso de São Paulo?
Glezer - Diferentemente de Salvador e do Rio _capitais
de vice-reino_, e das cidades mineiras _esplendor da mineração_,
os intelectuais paulistas não tinham comprovante material
do passado colonial glorioso. O que eles tinham? Uma cidade
que havia crescido. A pujança econômica, um território
em processo de ocupação, expansão da
exploração e crescimento demográfico.
Havia riqueza circulando, mas não havia nada de visível
para mostrar.
Dá-se, então, destaque ao bandeirantismo de
exploração. Na busca de minerais preciosos,
e também de mão-de-obra indígena para
ser escravizada, o que acontece é que se tem um processo
de conhecimento do território, de expansão e
de criação de outras áreas de povoamento.
Isso servirá como elemento de articulação.
O processo de formação do território
é então identificado com o processo de formação
da identidade nacional, justificando o exercício do
poder político na Primeira República.
Folha - Em um texto seu, a sra. chama o mito de bandeirante
de "passado de inclusão".
Glezer - Eu considero a utilização feita
pelos intelectuais paulistas, na Primeira e na Segunda República,
da figura da bandeirante como figura de inclusão. Porque
bandeirantes somos todos nós. As pessoas são
bandeirantes porque vieram morar aqui, porque são empreendedoras,
corajosas, ousadas. A inclusão leva em conta a heterogeneidade
racial dessa São Paulo que elaborou o mito do bandeirante.
Em 1900, a cidade tinha 2/3 da população de
origem estrangeira, que não tinha o português
como língua materna. Para a elite intelectual que dirigia
o Estado, usar o mito do bandeirante foi confortável
porque ele não era exatamente só o português:
era também o espanhol, o mameluco, o mestiço.
Folha - O que aconteceu com o mito do bandeirante? Ele
persiste hoje?
Glezer - Eu acho que persiste, com a mesma força
e com a mesma utilização política.
Folha
- A visão que São Paulo tem do século
16 ainda é essa?
Glezer - Não a visão que São Paulo
tem do século 16, mas a visão que São
Paulo tem de si. Economicamente, São Paulo é
uma área maior do que o Estado, porque abrange uma
parte de Minas, Mato Grosso do Sul e norte do Paraná.
Até hoje esses elementos são usados como argumentação
política, como argumentação para a relação
interna da sociedade no Estado e como um elemento de estruturação
de população heterogênea. É importante
lembrar que, no século 16, a população
também era heterogênea.
Folha - A sra. defende que, além de reelaborar
o passado colonial, os intelectuais republicanos também
reestruturaram o passado imperial de São Paulo.
Glezer - Também. O passado imperial foi reelaborado
porque, no Império, a província de São
Paulo era periférica, com atividade agrícola
de exportação limitada _pelo menos até
a metade do século 19. O peso político, no Império,
era da província fluminense e das chamadas províncias
do Norte _que, no período, correspondiam ao Nordeste
de hoje.
Com a República, a história de São Paulo
começa a ser identificada com a história do
Brasil, e a história da burguesia paulista vira a história
da burguesia brasileira.
É do final do século 19 a procura de uma identidade
local. A produção histórica de São
Paulo lê a história do Brasil no viés
paulista. Mas a produção histórica gaúcha
faz a mesma coisa, a produção pernambucana também,
e a carioca, idem.
Folha - Esse museu que se encontra hoje sob sua direção
surgiu no período em que São Paulo reelaborava
sua história.
Glezer - Ele surge no final do Império, para
a comemoração da Independência, mas é
um museu muito republicano.
É curioso que São Paulo tenha construído
um passado glorioso, mas não tenha mostrado preocupação
em preservá-lo. Todos os povos que têm orgulho
de seu passado preservam. Eu gostaria de saber por que nós
temos tanto ódio do nosso passado. Acho que é
patologia social. Eu acho lamentável que sejamos absolutamente
fanáticos do novo pelo novo.
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