Raquel Glezer

Para a historiadora que dirige o Museu Paulista, "é curioso que São Paulo tenha construído um passado glorioso, mas não tenha mostrado preocupação em preservá-lo"

(28/3/2000)


Identidade forjada justifica
hegemonia de SP, diz Glezer



Nome
: Raquel Glezer

Idade: 55 Cargo: diretora do Museu Paulista (Museu do Ipiranga)
Especialidade: historiadora, livre-docente, professora de teoria da história e metodologia da história da Universidade de São Paulo
Obras relacionadas ao tema: "Chão de Terra: um Estudo sobre São Paulo Colonial", tese de livre-docência, "As Transformações da Cidade de São Paulo na Virada dos Séculos 19 e 20", em Cadernos de História de São Paulo" (Museu Paulista da USP, vol. 3, 1994-1995)

O Brasil prepara-se para comemorar 500 anos; São Vicente, primeira vila paulista, completou 468 em janeiro. Mas só no final do século passado criou-se a imagem que se faz de São Paulo hoje_e que ajuda os paulistas a manter a postura de hegemonia política e econômica no país.

Em entrevista à Folha, a historiadora Raquel Glezer, diretora do Museu Paulista, fala sobre esse processo de construção de identidade, que teve na figura idealizada do bandeirante a imagem do desbravador responsável pela unidade territorial brasileira.

No século 19, em que o mundobuscou encontrar sentido para a palavra nação, São Paulo ganhou importânciaeconômica e política. De uma área periférica nos períodos colonial e imperial, a província passou, com a expansão cafeeira, a exercer papel central na vida política e econômica do país, em especial após a proclamação da República.

Intelectuais paulistas buscaram em fatos passados elementos que justificassem o novo poderio. Para Glezer, o mito do paulista empreendedor persiste hoje _não como leitura do século 16, mas como auto-imagem de São Paulo.

Ironicamente, esse passado glorioso, que deu tanto trabalho para ser construído ideologicamente, não foi preservado fisicamente. Descrita nos "Tristes Trópicos" de Lévi-Strauss como fadada "a ser sempre nova, sem dimensão temporal, sem vestígios, sem madureza", a cidade destruiu sistematicamente seus marcos históricos e referenciais.


Folha - O que é a efeméride dos 500 anos?
Raquel Glezer - É a efeméride do Descobrimento, isto é, da tomada de posse oficial do território que existe no Atlântico pelo reino de Portugal. Desde o século passado há pesquisas que discutem a chegada dos europeus e se as terras foram encontradas antes de Cabral. Mas é a tomada de posse do território pelo reino de Portugal em 1500 que se comemora. Nos 400 anos do Descobrimento, o nível das comemorações foi menor. A grande celebração do Brasil sempre foi a Independência.


Folha - Como a história desses 500 anos está sendo recontada?
Glezer - Se pensarmos em termos de estudos universitários, o processo de exploração do continente americano faz parte da expansão européia do período moderno, do contato dos europeus com outros continentes, outras populações e das reações que esses contatos provocaram. Reações de estranheza e de medo, mas também de enternecimento. Nas cartas e narrativas do período inicial do Descobrimento, nós encontramos as duas coisas: tanto o "Que sociedade idílica!" quanto o "Que sociedade monstruosa!", de homens sem lei, sem rei e sem fé.


Folha
- A visão hegemônica desse período caminha para uma condenação moral dos portugueses?
Glezer - É difícil falar em "condenação moral", pois a história não deve fazer julgamentos de valor. Por definição, ela é uma forma de interpretação que o presente faz sobre o passado. Eu não sei se para os homens dos séculos 15, 16 e 17 as condições de percepção de realidade de comportamento com o outro são compatíveis com as nossas. As nossas sociedades _pelo menos as ligadas à tradição européia_ passaram pela Revolução Francesa (1789). Antes disso, eram outras as regras, outras as formas de pensar.


Folha - Pensando no caso específico de São Paulo: como o historiador faz para pesquisar uma cidade que tem quase 450 anos de existência, mas que não deixou nas ruas quase nenhum traço desse passado?
Glezer - Se você andar bem devagar, com muita atenção, vai encontrar os marcos. Muito esparsos, muito isolados, sempre muito precários. É triste ver como nós destruímos nosso processo de ocupação do espaço, nosso processo de formação social.


Folha
- O que possibilitou que uma área urbana tão reduzida como era São Paulo tivesse tido um crescimento explosivo no final do século 19?
Glezer - Em 1890, o espaço explode. A cidade cresce em função da lavoura cafeeira, da estrada de ferro e da entrada de população estrangeira. A partir de 1900, ela cresce também em função de deslocamento da população nacional.


Folha
- Migração interna?
Glezer - Não chega a ser migração interna. A partir de 1890, os posseiros que viviam nas margens da cidade sofrem um processo de expulsão e são forçados a ir para a área urbana. A cidade cresce porque a população liberta também se desloca para as áreas urbanas, onde é mais fácil negociar suas condições de trabalho.


Folha - Como os intelectuais paulistas reelaboraram um passado glorioso para São Paulo?
Glezer - O último quarto do século 19 se caracterizou por uma preocupação com o próprio passado em todos os países da civilização ocidental.
Até a República, São Paulo era área periférica em relação ao poder central. O que se fez foi olhar para o passado e procurar por pontos de amarração com o presente. Isso foi muito característico da época e é conhecido como invenção da tradição, das representações, criação de identidade e imaginário.
O estudo da criação do passado colonial glorioso paulista é muito interessante porque, quando contraposto aos estudos sobre o Nordeste e o Rio, percebe-se que cada área cria a sua identidade.


Folha
- De onde os republicanos partiram para construir o passado glorioso de São Paulo?
Glezer - Diferentemente de Salvador e do Rio _capitais de vice-reino_, e das cidades mineiras _esplendor da mineração_, os intelectuais paulistas não tinham comprovante material do passado colonial glorioso. O que eles tinham? Uma cidade que havia crescido. A pujança econômica, um território em processo de ocupação, expansão da exploração e crescimento demográfico. Havia riqueza circulando, mas não havia nada de visível para mostrar.
Dá-se, então, destaque ao bandeirantismo de exploração. Na busca de minerais preciosos, e também de mão-de-obra indígena para ser escravizada, o que acontece é que se tem um processo de conhecimento do território, de expansão e de criação de outras áreas de povoamento.
Isso servirá como elemento de articulação. O processo de formação do território é então identificado com o processo de formação da identidade nacional, justificando o exercício do poder político na Primeira República.


Folha
- Em um texto seu, a sra. chama o mito de bandeirante de "passado de inclusão".
Glezer - Eu considero a utilização feita pelos intelectuais paulistas, na Primeira e na Segunda República, da figura da bandeirante como figura de inclusão. Porque bandeirantes somos todos nós. As pessoas são bandeirantes porque vieram morar aqui, porque são empreendedoras, corajosas, ousadas. A inclusão leva em conta a heterogeneidade racial dessa São Paulo que elaborou o mito do bandeirante.
Em 1900, a cidade tinha 2/3 da população de origem estrangeira, que não tinha o português como língua materna. Para a elite intelectual que dirigia o Estado, usar o mito do bandeirante foi confortável porque ele não era exatamente só o português: era também o espanhol, o mameluco, o mestiço.


Folha
- O que aconteceu com o mito do bandeirante? Ele persiste hoje?
Glezer - Eu acho que persiste, com a mesma força e com a mesma utilização política.

Folha - A visão que São Paulo tem do século 16 ainda é essa?
Glezer - Não a visão que São Paulo tem do século 16, mas a visão que São Paulo tem de si. Economicamente, São Paulo é uma área maior do que o Estado, porque abrange uma parte de Minas, Mato Grosso do Sul e norte do Paraná. Até hoje esses elementos são usados como argumentação política, como argumentação para a relação interna da sociedade no Estado e como um elemento de estruturação de população heterogênea. É importante lembrar que, no século 16, a população também era heterogênea.


Folha
- A sra. defende que, além de reelaborar o passado colonial, os intelectuais republicanos também reestruturaram o passado imperial de São Paulo.
Glezer - Também. O passado imperial foi reelaborado porque, no Império, a província de São Paulo era periférica, com atividade agrícola de exportação limitada _pelo menos até a metade do século 19. O peso político, no Império, era da província fluminense e das chamadas províncias do Norte _que, no período, correspondiam ao Nordeste de hoje.
Com a República, a história de São Paulo começa a ser identificada com a história do Brasil, e a história da burguesia paulista vira a história da burguesia brasileira.
É do final do século 19 a procura de uma identidade local. A produção histórica de São Paulo lê a história do Brasil no viés paulista. Mas a produção histórica gaúcha faz a mesma coisa, a produção pernambucana também, e a carioca, idem.


Folha
- Esse museu que se encontra hoje sob sua direção surgiu no período em que São Paulo reelaborava sua história.
Glezer - Ele surge no final do Império, para a comemoração da Independência, mas é um museu muito republicano.
É curioso que São Paulo tenha construído um passado glorioso, mas não tenha mostrado preocupação em preservá-lo. Todos os povos que têm orgulho de seu passado preservam. Eu gostaria de saber por que nós temos tanto ódio do nosso passado. Acho que é patologia social. Eu acho lamentável que sejamos absolutamente fanáticos do novo pelo novo.

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