Brancos e negros inventaram uma África, diz
Viotti
Nome:
Emília Viotti da Costa
Cargo:
professora emérita de História da América
Latina da Universidade de Yale (EUA), e professora emérita
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP (Universidade de São Paulo)
Livros: "Da Senzala à Colônia"
(Unesp), "Coroas de Glória, Lágrimas
de Sangue" (Companhia das Letras), entre outros
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SYLVIA
COLOMBO
Editora interina de Especiais
A historiadora Emília Viotti da Costa considera que, no Brasil,
hoje, "invocar a tradição e a cultura tornou-se uma forma
de resistência" diante do impacto da globalização. Para ela,
as manifestações contra a comemoração dos 500 anos do Descobrimento
"obrigam todos os brasileiros a repensar a história do passado
e do presente de maneira a torná-la mais inclusiva.
" Estudiosa do tema da escravidão, Emília Viotti lecionou
no Departamento de História da Universidade de São Paulo entre
64 e 69, quando foi aposentada pelo AI-5 (Ato Institucional
do governo militar que endureceu o regime). Na ocasião, seguiu
para os Estados Unidos, onde é professora emérita de história
da América Latina na Universidade de Yale (EUA). Em 1999,
Emília Viotti recebeu o título de professora emérita na USP.
É autora do livro "Da Senzala à Colônia", importante estudo
sobre a transição do trabalho escravo para o livre na região
cafeeira de São Paulo, e "Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue",
sobre a rebelião dos escravos em Demerara, na Guiana Inglesa,
no século 19 -em que analisa o fato histórico enfocando tanto
a micro como a macro-história.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Emília
Viotti concedeu à Folha, por e-mail, de sua casa, nos
EUA.
Folha - Recentemente, a sociedade portuguesa mobilizou-se
pela causa de Timor Leste, tem acolhido relativamente bem
a entrada de refugiados políticos de Angola, e a comemoração
dos 500 anos do Brasil recebe a atenção dos órgãos responsáveis
pela cultura naquele país. A sra. acredita que Portugal vê
a efeméride dos Descobrimentos como oportunidade para se redimir
dos danos causados pela colonização?
Emília Viotti - As relações entre Portugal e suas
ex-colônias mudaram desde a queda de Salazar (1889-1970).
Nada mais natural que tenha havido uma revisão do período
colonial. Hoje, em toda a Europa, as relações entre as ex-metrópoles
e colônias são distintas e há interesse de ambos os lados
na construção de novos laços.
A criação do Mercado Comum Europeu tem exercido uma poderosa
atração entre os povos das ex-colônias, provocando uma grande
imigração com destino às antigas metrópoles.
Portugal oferece ao Brasil uma porta para a Comunidade Européia
e o Brasil representa para Portugal um grande mercado. Isso
leva, de forma inevitável, a um processo de reexame do passado.
Se esse reexame levará à "conscientização histórica" de Portugal
em relação aos danos causados pela colonização é o que veremos.
Agora, a tendência é a reabilitação da idéia da comunidade
de língua portuguesa, defendida no passado por Gilberto Freyre.
Folha - Como se dá, hoje, o processo de miscigenação
e aculturamento dos povos negros na América Latina?
Viotti - Na América Latina, os negros foram introduzidos
como produto da escravidão: Colômbia, Brasil, Cuba, Peru,
México ou Argentina. Isso deixou marcas profundas nessas sociedades.
Um dos seus legados mais sinistros foi o preconceito racial
contra o negro, que até hoje persiste e dificulta sua integração
na sociedade. As crises econômicas que afetaram o Brasil no
século 20 e a política elitista, marcada frequentemente por
um racismo disfarçado, contribuíram para que se mantivessem
as desigualdades e alimentaram a discriminação.
Hoje, enfrentamos o paradoxo de um país que reconhece de várias
maneiras a importância do negro na constituição da sua cultura
e sociedade, mas que continua a discriminá-lo.
Folha - Como se mantém a identidade cultural africana,
sobrevivente da diáspora causada pela escravidão, num cenário
de globalização?
Viotti - O que se tem visto por toda parte é o que
Hobsbawn chamou de "a invenção da tradição". Os povos africanos
de origens diversas, que pertenceram no passado a grupos étnicos
distintos, com culturas e religiões diversas, foram transportados
para a América, onde foram transformados em escravos. No Novo
Mundo, eles criaram aos poucos uma nova identidade, que transcendeu
muitas vezes as diferenças étnicas que originalmente os dividiam.
Brancos e negros, cada um à sua maneira e por motivos diversos,
inventaram uma África. Hoje, com as novas possibilidades oferecidas
pela cultura de massa e pela mídia, multiplicaram-se os grupos
que invocam a tradição africana. Invocar a tradição e a cultura
tornou-se uma forma de resistência. Ultimamente se tem visto,
por toda parte, um renovado interesse pela cultura.
Por toda parte, os grupos que se sentiram excluídos tentam
criar um espaço próprio. Às tendências globalizadoras, que
supostamente pretendem uniformizar a experiência humana, eles
opõem suas "tradições". Dessa forma, globalização e multiculturalismo
não se excluem. São os dois lados de uma mesma moeda.
Folha - Como a sra. vê as manifestações que repudiam
a idéia de comemorar os 500 anos do Descobrimento do Brasil?
Viotti - Nos últimos anos, a indústria cultural tem
promovido inúmeros eventos. Tudo é motivo para comemorações,
congressos, publicação de livros. Os historiadores são os
primeiros a ser chamados a dar sua contribuição.
Portanto, é de se esperar que os 500 anos da "descoberta do
Brasil" sejam comemorados da mesma maneira como o foram a
Abolição, a Proclamação da República e outras datas que têm
sido consagradas como importantes marcos da história nacional.
É muito significativo que vários grupos estejam se mobilizando
para contestar a história oficial, que tem, quando muito,
adotado uma atitude condescendente para com negros, índios,
mulheres e outros grupos que se sentem excluídos dessa versão.
Sua mobilização obriga todos os brasileiros a repensar a história
do passado e do presente de maneira a torná-la mais inclusiva.
Folha - A América Latina teve, guardadas as especificidades
regionais, um passado colonial comum e ciclos políticos semelhantes:
liberalismo, populismo, ditaduras militares. A sra. acredita
que esse destino comum é uma tendência que continuará existindo?
Viotti - De fato existem certos paralelismos interessantes
na história dos países da América Latina, mas há também importantes
diferenças. Isso significa que, apesar de terem partilhado
uma posição semelhante no mercado internacional, suas peculiaridades
ecológicas, demográficas, seus diferentes recursos naturais
e graus de desenvolvimento, suas várias culturas imprimiram
um curso diverso a sua história política.
Como já tive ocasião de afirmar várias vezes, os agentes históricos
não são apenas produtos de uma história que já está predeterminada,
mas são agentes de uma história que, ao mesmo tempo, os produz
e é produzida por eles.
Se não fosse assim, como seria possível explicar a existência
até hoje de uma Cuba socialista? Como explicar revoluções
que abalaram a América Central nos anos 70/80 na Nicarágua,
El Salvador e Guatemala, depois da onda de repressão que desabou
sobre a América do Sul nos anos 60/70?
Uma abordagem economicista e mecanicista leva a políticas
equivocadas. Quando se imagina que a história já está predeterminada,
perdem-se de vista os caminhos possíveis. Isso leva a um conformismo
e a uma passividade perigosa. Tão perigosa quanto a visão
voluntarista oposta, que privilegia os agentes históricos
e ignora as forças que impõem limitações a sua vontade de
ação.
A idéia de que a história da América Latina passou por estágios
sucessivos -e que agora se encaminha para a social-democracia-
tem sido corretamente contestada pelos historiadores, que
apontam para as recorrências históricas de ditaduras militares
e civis, de táticas populistas ou ainda de práticas discursivas
liberais.
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Castro, militares abandonaram política
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