Em crônica no Carnaval de 1932, Belmonte ironizava autoritarismo de Getúlio

Folha recupera texto publicado às vésperas da folia daquele ano

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Esta crônica do cartunista e escritor Belmonte, publicada na Folha da Noite em 6 de fevereiro de 1932, anunciava o Carnaval, prestes a tomar conta da cidade de São Paulo. Em meio a alegria desse povo "literário" que uma vez por ano teima em "transbordar", dois desconhecidos discutem a política do "talentoso ditador" Getúlio Vargas e outras fantasias.

Reprodução da capa da Folha da Noite, com letras garrafais CARNAVAL
Capa da Folha da Noite de 6 de fevereiro de 1932, véspera de carnaval - Acervo

Véspera de Carnaval...

Passava eu, esta manhã, pela rua Direita, quando um cidadão escanifrado e lerdo, envolto num incrível fraque preto, me obrigou a estacar para pedir-me fogo. Dei-lhe. E ia prosseguir o meu caminho quando ele, empolgando-me um braço, pigarreou com solenidade e disse:

— Creio que o senhor não está com pressa... A folia começa hoje e não é elegante um cavalheiro se apressar para divertir-se. Conversemos, pois, um momento, neste cantinho discreto. Quais são as novidades do dia?

— Impossível saber. O dia mal começou...

— Oh! Mas as novidades do dia acontecem sempre na véspera. Que é que o senhor diz disso que aí está?

— Do Carnaval?

— Não. "Disso" aí! Da situação. Da política. O senhor não acha que vai tudo às mil maravilhas?

— Depende de...

— Não depende de coisa alguma. Olhe em torno de si e contemple a indisfarçável alacridade que há em todas as faces, que põe um brilho novo nos olhos dos homens e tinge de rosas púrpuras as faces das mulheres!

— O senhor é poeta?

— Não, meu caro senhor, sou brasileiro. Isto é, sou literário, um pouco retórico, às vezes transbordante, mas, acima de tudo, um patriota. Contemple tudo isso e responda-me: o país não vai às mil maravilhas? Vai. Já sei que o senhor vem me falar na taxa do 2% ouro, não é?

— Não, senhor. Eu não ia falar nada...

— Pois, tanto melhor! É preciso haver igualdade entre os portos, como deve haver em tudo. A igualdade é necessária, para que possa haver liberdade e fraternidade.

— E saúde.

— Saúde, pois não. Olhe para a pasta da Saúde Pública! Como só trabalha ali pelo saneamento da hinterlândia brasileira! Veja a pasta do Trabalho! Que febre, que ânsia de iniciativas! A pasta da Agricultura: veja o dinamismo do Assis! E o resto afins pelo mesmo tom. O próprio câmbio, meu amigo, o próprio câmbio está subindo!

— Subindo para onde?

— Oh! Para a casa do 3! Vão estabilizar-se de novo, meu caro senhor!

— Não diga...

— Digo, sim. E o café? Subindo, também! Há uma confiança geral, integral, absoluta, na obra regeneradora e construtora do governo provisório. Sobre nossas cabeças estendem-se nuvens cor-de-rosa! E sabe de uma coisa? Nós não queremos mais a Constituinte! Nunca mais!

— Nós, quem?

— Nós todos! Eu, o senhor, esse sujeito de óculos, essa gente toda que passa por aí, Constituinte para quê? Diga: para quê?

Encarou-me, de olhos fuzilantes. Estremeci. Ele prosseguiu, mais calmo:

— O país marcha na senda luminosa do progresso, pela mão firme do exímio senhor doutor Getúlio Vargas, nosso enérgico e talentoso ditador. A nossa situação financeira é magnífica! Aqui em São Paulo, só aqui, existem 4 mil contos de impostos em atraso: ora, desde que esse dinheiro entre para os cofres públicos...

— Como?

— Como?! À força! Para isso o governo tem poderes discricionários! Veja como essa gente que passa por aí só pensa nos bailes do hoje!

— É difícil ver um pensamento...

— Não é difícil. O pensamento vem sempre espiar pela janela dos olhos. Toda essa gente é feliz, graças à República Nova. Amanhã o dinheiro vai correr a rodo.

— Qual dinheiro?

— O nosso dinheiro. A alegria inundará a cidade!

— Qual alegria?

— A nossa alegria, cavalheiro! Nós somos um povo com todos os requisitos que só podem exigir de um povo essencialmente alegre! Os impostos foram aumentados. Por que?

— Não sei.

— Porque o povo tem dinheiro para pagá-los. Se não o tivesse, o [benemérito] governo provisório não os elevaria! Estamos cheios de dívidas. Por quê?

— Não sei também...

— Porque temos crédito. E se temos crédito, é porque há confiança. Ora, se temos dinheiro, crédito, confiança, alegria, bem-estar, responda-me lá: para que Constituinte?

— Não sei...

— Os senhores não sabem nada! São "saudosistas". Atascaram-se na gamela do PRP e agora vivem como Jeremias, chorando as mágoas! Nós não queremos Constituinte, nem interventor civil, paulista ou lá o que quer que seja! Nós queremos isso que está aí, porque melhor do que isso é impossível! E sabe que mais? Boa tarde!

Deu dois passos, mas voltou. Sorriu:

— Não leve a sério, cavalheiro. Eu estou fantasiado. O senhor não viu logo?

Mirei-o de alto a baixo. Ele atalhou:

— Não olhe por fora. A minha fantasia é subjetiva!

Aproximou-se mais. Olhou em torno. E sussurrou-me ao ouvido:

— Eu estou fantasiado de maluco!


Belmonte foi cartunista, pintor, ilustrador, cronista e escritor. Publicou na Folha de 1921, quando o jornal foi fundado, até 1947, ano de sua morte.

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