Bar
das lésbicas entra na história
Na geografia da marginalidade paulistana, há um lugar
reservado para o Ferro's Bar, bar do centro da cidade que,
durante muito tempo, foi o principal ponto de encontro das
lésbicas. Não raro, mulheres movidas a ciúmes
e álcool produziam, naquele ambiente enfumaçado
e de comida duvidosa, madrugadas memoráveis de pancadaria.
De manhã, porém, tudo deveria estar arrumado
para receber a clientela familiar. Até que viesse a
noite e as mulheres ocupassem, com seus olhares caçadores,
as mesas.
Encravado
numa região de cantinas italianas frequentadas por
artistas e boêmios, o bar desapareceu, mas está
prestes a virar história. Depois de participarem da
organização da Parada Gay, realizada no domingo
passado, movimentos de defesa de lésbicas preparam
seu próprio dia de orgulho, que será comemorado
no próximo 19 de agosto. "Há questões
específicas, que devem ser discutidas", diz Miriam
Martinho, coordenadora do grupo Um Outro Olhar.
O marco
é a resistência no Ferro's Bar, onde, em 19 de
agosto de 1983, foi lançado um manifesto pelos direitos
das lésbicas. Dias antes do manifesto, o dono do estabelecimento
chamou a polícia e proibiu as mulheres de vender ali
uma publicação chamada "ChanacomChana",
considerada um atentado aos bons costumes. "A proibição
era um absurdo. Éramos, afinal, as principais clientes",
comenta Miriam.
Desafiaram
a proibição, forçaram a entrada e leram,
em meio a aplausos e assovios, o manifesto. O ambiente, recorda-se
Miriam, estava tenso. Muita gente tinha pavor de ser identificada,
havia imprensa registrando o protesto. Desde aquele dia, o
Ferro's ganhou uma clientela lésbica mais intelectualizada
e politizada. E mais rica. Mas não resistiu.
Embora
permaneça a discriminação, os tempos
mudaram para os homossexuais da cidade de São Paulo,
como mostraram os números da passeata de domingo. Excesso
de bebidas, uso demasiado de drogas e prática de sexo
inseguro, comportamentos tão louvados no passado pela
marginalidade, são hoje condenados pelos padrões
do politicamente correto. A entidade Um Outro Olhar, coordenada
por Miriam, é um exemplo: sua missão é
cuidar da saúde das lésbicas, a maioria delas,
segundo descobriram, nem sequer fala com os médicos
sobre suas preferências sexuais.
O Ferro's,
onde agora funciona o bar Xingu, ganhou concorrência
de lugares nos bairros de elite, com uma cozinha mais confiável
e garçons respeitosos, acompanhando o movimento de
abandono do centro - eram tempos em que apenas um bar atendia
à clientela de mulheres homossexuais e, se alguém
dissesse que 800 mil pessoas iriam a uma parada gay na aristocrática
av. Paulista, seria tido por maluco.
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