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12/06/2004 - 04h12

Masoquismo e golpe de Estado circundam João Goulart

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GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

O leitor é advertido que o lance fundamental deste livro é ater-se aos fatos, à narrativa cronológica dos fatos; mas isso não exclui que o autor tenha uma interpretação, um juízo de valor sobre o que significou João Goulart na história do Brasil.

Evidentemente, é simplismo maniqueísta colocar a questão assim: a favor ou contra a queda do ex-presidente? O problema, no entanto, é que um balanço rigoroso do que representou João Goulart nunca é inocente nem neutro nem imparcial. Trata-se de um tema explosivo que envolve os impasses da civilização brasileira.

E mais: qualquer que seja a interpretação, isso acaba por trazer uma avaliação sobre o presente como história, posto que a derrubada de Jango em 1964 não deixou de determinar a atualidade brasileira para além da relação da história com o historiador.

A tese do livro é, para usar a linguagem da direita, que Jango estava a fim de dar um autogolpe, ou seja, queria continuar no poder, alterando a Constituição com direito à reeleição, ou valendo-se de uma quartelada. Essa tese acerca do Jango golpista foi combatida e negada várias vezes com veemência por Darcy Ribeiro (além de Nelson Werneck Sodré, que não é citado nem uma única vez); aliás, este livro apresenta uma versão antípoda do ex-chefe da Casa Civil de Jango, que escreveu dezenas e dezenas de textos sobre a derrota do janguismo. Golpe é coisa da direita, não da esquerda.

No cotejo (que já fora feito por Paulo Schelling) entre Jango e Brizola, o autor mostra que o primeiro era pusilânime, vacilão, fraco, enquanto o segundo tinha clareza e pulso firme, sendo coerente e corajoso; porém, ao deixar de lado a tramóia do imperialismo nos idos de março de 64, o livro se afasta de uma perspectiva brizolista (o grupo dos 11 é visto sob o ângulo da "tradição cartorial"), afastando-se do que Moriz Bandeira escreveu sobre as contradições do governo João Goulart.

Embora o embaixador norte-americano Lincoln Gordon seja referido de maneira anedótica e respeitosa, a questão do imperialismo está inteiramente alijada, de modo que se trata menos de uma narrativa profunda do que de uma descrição perfunctória. Os nexos causais estão ausentes.

Os dois motivos que desencadearam o golpe --a reforma agrária e a lei da remessa de lucros-- são considerados desprovidos de qualquer relevância. A chamada aliança do latifúndio com o imperialismo (o Brasil como grande exportador de capitais) vira conversa para boi dormir. Mas sem isso é difícil explicar a maior rasteira que um político levou na história do Brasil.

"Ópera bufa", professor? Aí pegou pesado. E, detalhe, essa rasteira continua mesmo depois de Jango morto, em 1976. Rasteira póstuma. O único presidente do Brasil que morreu no exílio. Convenhamos que isso não é uma experiência agradável.

Afirmar que Jango foi um "homem de sorte" porque não retornou do exílio, de modo que não vivenciou de novo um fracasso, revela que o autor prefere as novas lideranças políticas pós-golpe de 64. Se a isso não tivesse seguido a supressão das liberdades democráticas, bem que Jango poderia ter caído. Numa boa. Bem feito! A culpa é de Getúlio Vargas que foi lhe dar colher de chá e biscoitinho em São Borja.

Essa é a moral deste livro anti-Jango, que, aliás, nisso não apresenta absolutamente nenhuma novidade, pois já se tornou lugar comum da ideologia hegemônica no Brasil das últimas décadas: dizer que Jango caiu por incompetência ou masoquismo, mas não por causa do imperialismo americano. O ideal seria cortá-lo, mas não interromper a democracia.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de 'A Salvação da Lavoura' (ed. Casa Amarela)

Avaliação:

Jango, um Perfil (1945-1964)
Autor:
Marco Antonio Villa
Editora: Globo
Quanto: R$ 38 (288 págs.)

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