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13/12/2006 - 18h21

Morte de Pinochet não basta para redemocratização do Chile

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ANDREA MURTA
da Folha Online

Se a morte do general Augusto Pinochet obriga o Chile a encarar os "fantasmas" da ditadura e as divisões políticas do país, ela não é suficiente para que a nação complete a tarefa de sua reconstrução democrática, na opinião do especialista Manuel Antonio Garretón, sociólogo e cientista político da Universidade do Chile, em entrevista exclusiva à Folha Online.

"Um país que mantém como Constituição um texto imposto por Pinochet não está reconciliado com seu passado", explica. Para ele, 17 anos após o fim da ditadura, o Chile ainda tem um longo caminho para se desvincular do período militar.

Segundo Garretón, o primeiro passo para a reconstrução da democracia chilena é a continuidade dos processos contra Pinochet --que morreu sem passar por uma condenação formal pelos crimes dos quais é acusado.

O especialista rejeita a tese de que o período da ditadura trouxe avanços econômicos para o Chile. "É certo que há essa percepção, mas esse é um argumento ideológico inteiramente falso. É uma maneira de justificar as violações aos direitos humanos, os crimes cometidos, as arbitrariedades", diz. "É preciso acabar de uma vez por todas com esse mito".

Na entrevista, Garretón tece ainda duras críticas ao presidente americano, George W. Bush, a quem chama de "maior assassino do mundo de hoje", e aos Estados Unidos, por terem apoiado a ditadura de Pinochet.

O ditador morreu no último domingo aos 91 anos, depois de sofrer um infarto no miocárdio e permanecer uma semana internado no Hospital Militar de Santiago.

Ele respondia a cerca de 300 acusações criminais contra mais de 3.000 vítimas --entre mortos e desaparecidos-- de sua ditadura. Pinochet era investigado também por enriquecimento ilícito. Mais de cem contas bancárias secretas foram descobertas no Riggs Bank de Washington e em outras instituições bancárias, que acumulavam mais de US$ 27 milhões.

Leia a seguir a íntegra da entrevista exclusiva concedida por Garretón à Folha Online:

Folha Online- Que significado tem a morte de Pinochet para a democracia do Chile hoje?

Manuel Antonio Garretón-
Creio que a morte de Pinochet abre a oportunidade para, por um lado, a direita política se converta em um grupo verdadeiramente democrático, na medida em que neste momento ainda é uma direita demasiadamente vinculada à manutenção e projeção da obra militar. Sua identidade é de um setor que busca manter a obra do regime militar. Então, com a morte de Pinochet, pode ocorrer o distanciamento desses laços, permitindo que a direita se torne democrática.

Em segundo lugar, sem Pinochet, abre-se a oportunidade de romper a institucionalidade que foi inteiramente gerada na ditadura, partindo da Constituição. Com sua morte, desaparece o personagem simbólico que permitia que a institucionalidade mantivesse sua referência. Então, agora, é possível esperar uma maior vontade de mudar a Constituição e toda a institucionalidade implementada pela ditadura.

O problema principal que surge para a democracia é a dimensão da violação dos direitos humanos, na medida em que Pinochet morre sem ter sido condenado judicialmente por seus atos. Ele foi condenado simbolicamente, estava sendo processado, mas tanto os assassinatos que permitiu quanto os roubos que perpetrou seguem sem punição.

Isso é um problema porque deixa no seio da sociedade a impunidade como um de seus fundamentos, e a impunidade é basicamente um princípio ético antidemocrático.

Folha Online- Além da possível virada da direita, é possível esperar um fortalecimento da esquerda chilena com a morte de seu grande opositor?

Garretón-
Na verdade, não. Tenho a impressão de que isso não afeta a esquerda, a não ser no sentido de que ela perde em uma de suas grandes reivindicações --a de obter a verdade e a justiça em todos os casos de direitos humanos.

Mas há um problema aqui para a esquerda. Há os que afirmam que os grupos de esquerda se mantinha juntos, e a Concertação (a aliança de centro-esquerda que derrotou Pinochet no plebiscito em 1990 e continua no poder até hoje) continuava unida até os dias atuais graças à resistência contra Pinochet. E graças também à institucionalidade que os obriga, devido ao sistema eleitoral chileno, a concorrerem juntos nas eleições, uma vez que sozinhos não alcançam nem 20% da preferência do eleitorado.

Há o temor entre esses setores de que a morte do ditador gere uma tendência centrífuga, já que não haverá mais a presença desse objetivo comum que era o de se opôr a Pinochet. Esse é um ponto importante. Durante certa época, houve membros da Concertação, que diziam: "Pinochet, não morra"!

Mas penso que este é um argumento falso. É evidente que a existência de um inimigo comum pode causar certa união. Mas é certo também que essa unidade é, primeiro, produto de um aprendizado ético muito profundo para a classe política. Eles possuem a aprendizagem de governo majoritário que o país necessita. Ainda que tenham se unido devido à ditadura, é preciso dizer que o êxito da Concertação foi tão forte que isso só os estimula a continuar juntos. E há um eleitorado, uma opinião pública, que vota na Concertação. Eles não querem estes grupos separados.

Então, se há menos força simbólica agora após a morte de Pinochet, mesmo assim continuam existindo os incentivos políticos e, claro, a tarefa de fazer do Chile um país verdadeiramente democrático não está terminada.

Folha Online- A morte de Pinochet torna mais fácil o ressurgimento do apoio explícito ao que representou Salvador Allende e seu projeto socialista no Chile?

Garretón-
Allende ainda é, para muitos setores de esquerda, o símbolo de um projeto que, independentemente de como o chamam, continua válido, que é a transformação da sociedade dentro das instituições democráticas. Esse sentido de busca por uma maior igualdade e integração e justiça, nos marcos democráticos, esses elementos continuam expressos na figura de Allende.

Mas isso, de algum modo, passou a ser internalizado de outra maneira, agora não mais somente a partir da pessoa de Allende, mas também a partir dos conteúdos deste projeto. E há uma reelaboração deste conteúdo. E nisso é certo que o ano de 2003 [aniversário de 30 anos do golpe militar] aconteceu a primeira legitimação nacional de Allende, que era uma tarefa pendente no país.

Mas não acredito que se possa pensar o futuro, por um lado, sem ter em mente o que foi a experiência da união popular, e por outro, sem ir a muito mais além, pois já estamos vivendo em um novo contexto mundial.

Folha Online- O que ainda é preciso para que o Chile se reconcilie com seu passado e resolva as questões pendentes deixadas pela ditadura?

Garretón-
Creio que é preciso, primeiro, levar os processo contra Pinochet adiante. Justiça não significa só castigo --se fosse assim, os processos não teriam sentido, pois o ditador não está mais aqui para ser castigado-- mas também significa reparação.

Além disso, insisto que o ponto principal para uma reconciliação é a questão da nossa Constituição. Um país que tem uma Constituição que foi entregue e imposta por Pinochet, e que até hoje passou apenas por reformas, sem discutir, como fizeram os brasileiros, seu texto integral, não está reconciliado com seu passado.

É preciso lembrar que Constituição significa "constituir". Um país que não estudou seus valores fundamentais, seu consenso nos valores mínimos de convivência e nas normas dessa convivência, é um país que não está minimamente reconciliado com seu passado.

E por último, enquanto o poder judicial e a direita não fizerem um mea-culpa e se comportarem efetivamente como atores democráticos, não estaremos reconciliados. Para isso, é preciso que a direita se torne uma oposição democrática, que segue as regras do jogo democrático, e que o Judiciário cumpra sua função de fazer valer a justiça.

Essas são as duas instituições que não fizeram seu mea-culpa. Até o Exército, em 2003, assumiu sua responsabilidade pela ditadura e fez o mea-culpa.

Ainda há quem diga no Chile que os assassinatos da ditadura foram necessários, que Pinochet foi um ditador de sucesso, que salvou o país do comunismo, e que nesse salvamento foi necessário violar os direitos humanos. Isso demonstra que há dois Chiles diferentes que continuam de lados opostos na sociedade.

E, em um outro plano, um país com as desigualdades econômicas que há no Chile, e sem uma Constituição que permita ao Estado intervir para alterar essas desigualdades, segue sendo um país que alimenta uma permanente divisão.

Folha Online- Mesmo hoje, a presidente do Chile, Michelle Bachelet, tem fortes laços com os militares. Apesar de ter sido torturada e de ter perdido seu pai para a ditadura, o partido de Bachelet foi fundado por um militar, e ela própria foi ministra da Defesa. Qual a força política que ainda detém os militares hoje no Chile?

Garretón-
O Exército renunciou a sua vinculação simbólica com a ditadura com o fenômeno ocorrido durante a época do [ex-presidente Ricardo] Lagos, e quando Michele Bachelet foi ministra da Defesa. O Exército deixou de ser um poder fático para ser uma instituição obediente ao poder político.

Dito isso, diria que o Exército não possui hoje influência na vida do Chile, exceto nas questões institucionais, nas quais ainda falta maior transparência das forças armadas. A sociedade não está na presença de um ator político, mas sim a um ator que pode ser muito impermeável ao que
ocorre dentro da sociedade, e de seus próprios marcos organizacionais.

Folha Online- Há uma percepção de que os avanços econômicos promovidos por Pinochet no Chile de certa forma amenizam as perdas democráticas durante sua ditadura...

Garretón-
É certo que há essa percepção, mas esse é um argumento ideológico inteiramente falso. É uma maneira de justificar as violações aos direitos humanos, os crimes cometidos, as arbitrariedades. Mas, para fazer essa análise, temos que considerar todos e cada um dos indicadores econômicos.

Na verdade, o modelo econômico estabelecido por Pinochet, em termos de geração de empregos, crescimento, superação da pobreza e igualdade distributiva, foi inferior tanto aos indicadores dos 17 anos que o precederam (incluindo aí o último ano do governo Allende) quanto aos 17 anos que se passaram depois do fim de seu governo, em regime democrático.

É preciso acabar de uma vez por todas com esse mito.

Folha Online- Os Estados Unidos, que apoiaram o golpe contra Allende, emitiram um comunicado após a morte de Pinochet no qual disseram que a ditadura foi um dos piores períodos da história do Chile. Como você vê essa mudança de posicionamento?

Garretón-
Creio que é muito importante que os EUA reconheçam que a ditadura foi apenas negativa para o Chile. Curiosamente, é o mesmo que disseram os governos europeus, cuja solidariedade foi para as vítimas da ditadura e não para Pinochet.

Mesmo assim, é incompleta essa declaração por parte dos EUA, pois uma parte importante das violações dos direitos humanos na América Latina e no Chile foram permanentemente sustentadas pelo apoio americano aos regimes militares locais.

O fato de o principal assassino do mundo hoje, o sr. Bush, tenha feito essa declaração por meio dos porta-vozes do governo, é muito bom. Mas não seria mal ouvi-los admitir a responsabilidade que tiveram na manutenção da ditadura chilena, como o fazem também hoje em outros países de outras partes do mundo.

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