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Nina Horta

A volta

Por que essa volta ao lar? As casas ficaram destratadas ou as mulheres sentiram saudade da sessão das 14h?

Todos se impressionam como a comida passou a ser de uma importância na mídia e na vida de todo mundo. Sorrateiramente, porém, tenho percebido que o artesanato pode substituir a cozinha.

Os anos 50-60-70 foram dolorosos. Fórmica, pé palito, programas de TV nos quais as mulheres passavam as tardes aprendendo a fazer caixas e pintar sabão. Eu me lembro do Clodovil, ele mesmo participante de um desses programas, dando ataques de nervos com as feiuras --na verdade, assistir aos tais programas era como ver um stand-up de um bom comediante. Ria-se a valer. Era o melhor humor da TV. A tricoteira enroscada nos fios, a demonstradora de trançado indígena com o dedo preso nas alianças de palha de uma tribo, um divertimento sem fim. Depois foi acabando, devagarinho, exaurido por anos e anos da telinha. Vieram os programas de sexo, de relacionamentos, de saúde, nutrição, dietas sem fim. Muita casca de banana.

Contei 188 livros sobre como arrumar a casa numa pesquisa superficial. Já viram um programa do GNT no qual uma amável senhorita ensina a arrumar os armários, a cozinha? Outra decora a casa. O canal Bem Simples, então, voltou totalmente ao artesanato caseiro de bandejas forradas e lacinhos e borboletas. Muita borboleta. Sinto uma alegria perversa, uma vontade de me jogar de boca nessas estrelas e Mickeys, sem censura.

Há um blog, se não me engano, com o assunto "é sustentável, mas é feio pra cacete", que expõe contribuições dos leitores, como tudo o que se faz com garrafas PET. Faz-se tudo, como luminárias de copo descartável, vestidos de cápsula de Nespresso, presépio com lixo eletrônico, saia de guarda-chuva. Tem umas coisas sensacionais, vestidos de baile inteiros de jornal, com cauda e tudo, manifestações de criatividade há muito controladas. E essas coisas pegam, quando você menos espera está aprendendo pintura gestual sobre garrafa de vidro e almofada de coração em capitonê.

Qual o motivo dessa volta ao lar? As casas ficaram destratadas ou as mulheres não aguentaram a saudade da sessão das 14h? Ou os dois? Os programas de TV estão mais sofisticados, o que os torna mais perigosos. Por que além da cozinha, onde todos querem meter a mão na massa sentados no sofá, de repente voltamos para o "papier mâché", o tricô, o crochê? Ou nunca saímos, só havíamos reprimido esse nosso lado obsessivo e kitsch?

Para mim, foi a síndrome do tricô. Ainda não consegui terminar uma peça que se possa chamar de peça. São todas levemente disformes. Mas nada consegue parar minha fome de lidar com as agulhas e com a lã, sanha de vestir alguém, de trabalhar com as mãos, de esquecer o computador, a leitura, e mergulhar na atividade de tecer. Síndrome de Homo faber.

Sinto que em breve estaremos bordando e montando Nossa Senhora Aparecida como enfeite de abridor de porta e, para acabar de vez com essa mania de cozinha, a pintura em frigideiras. Com as frigideiras pintadas já não haverá a mínima possibilidade de cozinhar. E teremos mudado de etapa, quem quiser me explicar estou aqui toda ouvidos.


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