São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 1999



1914
1917
1929
1939
1945
1949
1968
1969
1979
1989
Brasil
Pioneiros
Galeria
 
 
  LEVANTE COMUNISTA INICIOU NOVA ERA, ESPALHOU INSURREIÇÕES PELO MUNDO E ACABOU EM PESADELO TOTALITÁRIO; PRIVATIZADA, RÚSSIA VÊ A MORTALIDADE CRESCER E A EXPECTATIVA DE VIDA CAIR

Revolução irradia utopia igualitária | Espírito da época

Revolução irradia utopia igualitária

JOSÉ ARBEX
especial para a Folha

“Passemos à construção do Estado socialista proletário russo! Viva a revolução mundial!”, proclamou Vladimir Ilitch Lênin, na tarde de 25 de outubro (do calendário juliano, então em vigor na Rússia, equivalente ao 7 de novembro gregoriano), na sede do soviete (conselho) de Petrogrado. Inaugurava-se uma nova era na história da humanidade. Nenhum macro evento cultural, político e social do mundo contemporâneo pode ser analisado sem se levar em conta a história e os destinos da revolução de 1917.
Lênin e Trótski, os principais líderes da Revolução Russa, estavam certos de que aquele era apenas o primeiro passo de um poderoso movimento revolucionário mundial. E era mesmo.
Entre o final de 1917 e 1920, multiplicaram-se greves, manifestações e insurreições proletárias e camponesas no Brasil, Argentina, Cuba, México, Estados Unidos, China, Austrália, Holanda, Áustria, Bulgária e Espanha. Em 1918, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (assassinados pelo governo) chegaram perto de tomar o poder em uma Alemanha humilhada pelo Tratado de Versalhes.
Todos os setores da vida, da arte e da cultura foram afetados pela revolução, que liberou uma formidável explosão de criatividade: a poesia de Maiakóvski, o cinema de Eisenstein, as pinturas de Malevitch e Kandinski, o teatro de Meyerhold e Stanislavski.
O sonho libertário de uma humanidade mais justa e solidária parecia, então, ao alcance da mão. Em 1922, ao proclamar a fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, os líderes da Revolução Russa apareciam como anunciadores do triunfo das luzes da Razão sobre os mais ferozes instintos humanos de competição. O homem poderia, enfim, domesticar a história: o futuro só poderia ser brilhante, socialista.
Mas, ao contrário do que desejavam Lênin e Trótski, a revolução fracassou. Fora da URSS, foi massacrada pelos exércitos e agentes do capitalismo liberal. Dentro da URSS, foi derrotada pelo isolamento da revolução, pelo atraso econômico e social herdados do czarismo, e pelo surgimento de uma poderosa casta de burocratas corruptos que se apossou dos principais cargos de comando do Partido Comunista da União Soviética (PCUS, o único que podia legalmente existir). Essa corrente tinha como líder e ícone um obscuro e sinistro ex-seminarista georgiano: Josef Stálin.
Stálin instaurou o culto à sua própria personalidade, proibiu todos os debates, até mesmo dentro do PCUS, e substituiu o “internacionalismo socialista” pela idéia de “socialismo em um só país” (hipótese que não existe no marxismo). A polícia stalinista executava ou enviava os “traidores” aos campos de trabalho escravo na Sibéria. Assim, os anos 20 foram encerrados como uma monstruosa ditadura totalitária.
Não que o capitalismo estivesse bem das pernas. Muito ao contrário: o famoso crash da Bolsa de Nova York, em 1929, tinha, como contrapartida, uma Europa devastada pela guerra. Na Alemanha, a ascensão do nazismo foi um sintoma do esfacelamento da “ordem” burguesa. Hitler contou com a conivência dos governos liberais europeus, como uma promessa de aniquilação do comunismo. Churchill chegou a afirmar que a Europa precisava de vários “hítleres”. Calculava que Hitler e Stálin se destruiriam mutuamente. Quase acertou.
Hitler concentrou a maior parte de suas tropas na invasão da URSS, iniciada em junho de 1941. Calcula-se que cerca de 30 milhões de cidadãos e soldados soviéticos morreram na guerra contra o invasor alemão, o que faz da URSS a grande responsável pela derrota do nazismo.

O Bem contra o Mal
A frágil aliança entre comunistas e liberais que derrotou Hitler seria rompida ao final da Segunda Guerra, com a Guerra Fria. Trata-se de um dos períodos mais complexos e mal compreendidos da história. Foi um jogo de equilíbrio geopolítico entre duas potências nucleares, mas foi, também, infinitamente mais do que isso.
A Guerra Fria colocou em jogo toda uma simbologia do Bem contra o Mal, que mudava os sinais conforme a propensão ideológica do narrador da fábula. Sedimentou também a noção da fragilidade da vida individual e a de que a morte era uma possibilidade política e tecnológica: bastaria que os líderes apertassem o famoso “botão vermelho”, e começaria a guerra nuclear.
A Guerra Fria destruiu a credibilidade do discurso político, instituiu o cinismo na vida pública, esvaziou o diálogo entre pensamentos distintos, fez do homem mero apêndice da tecnologia.
Intelectuais e políticos eram obrigados a se posicionar. Para a “direita”, o stalinismo era decorrência necessária do marxismo, o qual jamais teria passado de uma vã e louca tentativa de controlar a história. A URSS, a China, Cuba e outros Estados comunistas mostravam que “socialismo” era incompatível com “liberdade”.
A “esquerda” se dividiu. Stalinistas e pró-soviéticos justificavam a ditadura e a corrupção na URSS como “mal menor”. Trotsquistas e outras correntes marxistas preconizavam a “revolução política” para “liquidar o stalinismo” e dar novo impulso à revolução mundial. Assim, todos eram obrigados a se posicionar face à mera existência da URSS. Bem ou mal, um regime se apresentava como alternativa ao capitalismo, impunha limites ao mercado, colocava indagações sobre o futuro.
Gorbatchov achava que poderia construir um “estado de direito”. Não via antagonismo entre “socialismo” e “liberdade”. Mais estranho ainda: Gorbatchov fazia o que dizia. Nunca reprimiu opositores (ao contrário, libertou os presos políticos); nunca enviou tropas para sufocar manifestações. Foi mais longe na prática da tolerância do que qualquer outro estadista.
Sua queda, em 1991, causou um prejuízo teórico e político para a humanidade. Poucos entenderam isso. A “direita” apressou-se em festejar o ingresso da Rússia no mercado. A “esquerda” tratou a perestroika como “traição”. Entre os risos e a ira, uma rica experiência permanece soterrada sob os escombros da URSS.
Hoje, a Rússia privatizada é um dos poucos países em que a mortalidade infantil cresce com a mesma rapidez com que cai a expectativa de vida. Seu PIB atual representa 60% do que era em 1989. Em suas cidades, dominadas pela máfia, vicejam a prostituição, os cassinos, o narcotráfico. A distância que separa esse quadro desolador da proclamação leninista de 25 de outubro de 1917 é a própria síntese da história do século. Como disse o grande historiador Eric Hobsbawn, a Revolução de 1917 foi o evento singular mais marcante do mundo contemporâneo. Sua grandeza e tragédia continuarão a desafiar intelectuais, políticos e historiadores no século 21.

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.