São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 1999



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  AO DESMONTAR A REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL, THATCHER RESSUSCITOU A CRENÇA DE QUE O MERCADO PODE RESOLVER OS PROBLEMAS ECONÔMICOS E DISSEMINOU O NEOLIBERALISMO

Dama dá xeque no Estado do bem-estar | Espírito da época

Dama dá xeque no Estado do bem-estar

OSCAR PILAGALLO
Editor de Dinheiro

O garçom inclina-se solícito ao lado de Margaret Thatcher, que, à cabeceira da longa mesa, preside almoço em Londres com a cúpula do governo britânico.
_ Rosbife, madame?
_ Por favor.
_ E os legumes?
_ Para eles também.
Contada até em rodas conservadoras (os ingleses sabem rir deles próprios), a anedota dos anos 80 revela o estilo inconfundível da então primeira-ministra.
A imagem de Dama de Ferro foi construída com zelo profissional desde o início de sua carreira.
As polêmicas em que se envolvia eram tão emblemáticas que pareciam não ter sido escolhidas por acaso. Em 1970, por exemplo, quando era ministra da Educação, decidiu cortar o leite gratuito da merenda escolar por razões orçamentárias. Assim, marcava posições com exagero de caricatura.
Os britânicos, portanto, sabiam muito bem quem era Thatcher quando há 20 anos, no dia 3 de maio de 1979, a elegeram primeira-ministra, dando-lhe confortável maioria no Parlamento.
A situação parecia ao eleitorado exigir mão firme. A inflação começava a sair do controle, o país passara três anos antes pela humilhação de ter de recorrer ao FMI, e as greves se multiplicavam.
Com esse pano de fundo, Thatcher bateu os trabalhistas com a proposta de combater a inflação, dobrar os sindicatos, desmantelar o Estado do Bem-Estar Social e desestatizar a economia.
Começava assim a mais profunda revolução conservadora que mais tarde iria se espalhar pelo mundo e em 1990 chegaria ao Brasil com o “aggiornamento” de Collor, programa liberal que foi aprofundado por FHC.
O governo Thatcher, no entanto, começou patinando, apesar da determinação da premiê. A inflação não caiu num primeiro momento e o desemprego cresceu.
Foi só a partir da exploração do nacionalismo, com a vitória da Guerra das Malvinas, em 1982, que ela concentrou o poder necessário para iniciar as reformas.
No ano seguinte, reelegeu-se pela primeira vez e em 1984 enfrentou os mineiros na greve de quase um ano que marca o início da decadência do sindicalismo no país. Ao final do movimento, 20 mil mineiros foram demitidos.
Thatcher era amiga do presidente Reagan, que, do outro lado do Atlântico, liderava um governo igualmente conservador nos EUA, país que, ao contrário da Grã-Bretanha, é determinante para o rumo da economia mundial.
Foi ela, no entanto, e não Reagan, quem entrou para o léxico político. Thatcherismo passou a designar a corrente de pensamento que prega a solução de mercado para praticamente todos os problemas econômicos.
A concepção da doutrina não é de Thatcher. O que ela fez foi criar as condições para colocar em prática as propostas de Milton Friedman e Friedrich von Hayek.
A permanência de Thatcher deve-se em parte ao fato de seu conservadorismo ter sido mais ideológico que o de Reagan.
O presidente americano era mais pragmático. Apostou que baixar as alíquotas dos impostos estimularia o crescimento _e ganhou. Não por muito tempo, mas o suficiente para se reeleger com base no desempenho econômico.
O corte nos impostos provocou déficits que tornaram seu programa insustentável no longo prazo. Mas nem interessa, para o argumento, sua durabilidade. O importante é notar que não tinha consistência programática.

A fundamentalista
Com Thatcher foi diferente. Ao contrário de Reagan (que assumiu um país já imerso no capitalismo liberal), ela herdou um Estado corporativo e assistencialista que havia sido montado pelos trabalhistas desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945.
Sua forte convicção fez com que fosse chamada de fundamentalista do mercado. Missionária da causa liberal, Thatcher atraiu a classe média para seu projeto. Mais do que qualquer outro líder conservador, Thatcher promoveu o conceito de capitalismo popular, impregnando na população valores que até então eram típicos das classes mais abastadas.
O trabalho de cooptação foi sustentado por dois pilares: o estímulo à participação dos cidadãos no programa de privatização e o acesso facilitado ao financiamento para a compra da casa própria.
Thatcher deixou o poder em 1990, após ter sido vítima de um golpe palaciano. Foi a governante britânica que mais tempo permaneceu no cargo desde a primeira metade do século passado.
Sucedida por John Major, seu ministro da Fazenda, um dos “legumes” da anedota, Thatcher viu seu programa ter continuidade. Ele só o suavizou no que não tinha de essencial (como o antagonismo à integração européia).
O thatcherismo, no entanto, resistiu até ao fim do período de 18 anos em que os conservadores estiveram no poder. O primeiro-ministro trabalhista, Tony Blair, só conseguiu viabilizar sua candidatura ao empunhar bandeiras que haviam sido levantadas por Thatcher, o que lhe valeu o apelido de Tory Blair (“tory”, em inglês, significa conservador).
Os trabalhistas se defendem, falam em novo socialismo, terceira via etc., mas o fato é que os sindicatos não voltaram a ser o que eram, nem as empresas privatizadas foram reestatizadas.
Ao se internacionalizar, a revolução de Thatcher tropeçou em realidades diferentes da britânica dos anos 80. No Brasil nunca houve nada parecido com o Estado de Bem-Estar Social, a rede de proteção que, ao garantir a sobrevivência digna dos excluídos, evita o esgarçamento do tecido social. Na Grã-Bretanha, mesmo após todos os cortes nos programas sociais, qualquer cidadão pode estudar e tem acesso à saúde pública.
O jornal “Financial Times” chegou a elogiar a agenda liberal de FHC, que teria feito em um mandato o que Thatcher fez em três.
A nota foi divulgada como material de propaganda pelo Planalto. Mas, a julgar pelos baixos níveis de popularidade do presidente, poderá um dia ser usada com o mesmo propósito pela oposição.

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