São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 1999



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REVOLUÇÃO DE 1949 UNIFICOU O PAÍS MAIS POPULOSO DO PLANETA E LANÇOU AS BASES DA POTÊNCIA QUE TEM TUDO PARA SE TORNAR A GRANDE RIVAL DOS ESTADOS UNIDOS NO SÉCULO 21

China acorda e faz o mundo estremecer | Espírito da época

China acorda e faz o mundo estremecer

JAIME SPITZCOVSKY
Editor de Mundo

‘‘Quando a China acordar, ela fará o mundo tremer’’. O vaticínio do francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) ganha contornos de realidade à medida que se avizinha o próximo século, um período histórico inclinado a ter o país mais populoso do planeta como protagonista de uma acirrada rivalidade geopolítica e econômica com os Estados Unidos.
O ressurgimento mandarim guarda na Revolução Chinesa de 1949 um de seus principais alicerces e, descontado o evidente tom propagandístico de sua fala, o líder revolucionário Mao Tse-tung tinha razão ao sentenciar no discurso de fundação da ‘‘república popular’’: ‘‘O povo chinês ficou novamente em pé’’. Prenunciava assim o fim de anos da China como um país castigado pelo colonialismo, pelo atraso tecnológico e pelas lutas políticas internas.
Mao Tse-tung, ao discursar na praça Tiananmen, em Pequim, no dia 1º de outubro de 1949, abalava o século ao anunciar o surgimento do regime fadado a ser o fiel da balança na disputa de gigantes da Guerra Fria (EUA e URSS) e acelerava o desenho do século 21, quando Pequim deverá seguir como uma estrela ascendente.
O maoísmo arquitetou um regime totalitário e notório por impor pesado custo humano ao país: as estimativas do número de vítimas entre 1949 e 1987, mortos pela repressão e ondas de fome, variam de 80 milhões a 160 milhões. Com esse pano de fundo, o regime criado por Mao contribuiu também para recolocar a China num caminho que os herdeiros do ‘‘Grande Timoneiro’’ chamam de ‘‘renascimento histórico de uma civilização milenar’’.
Hoje, os ideólogos do PC chinês reverenciam Mao mais por sua revolução ter recuperado a unidade territorial do país e montado um governo centralizado do que pela implementação de um regime marxista-leninista, atualmente corroído pelas reformas pró-capitalismo iniciadas em 1978. O ‘‘Grande Timoneiro’’, ao estender seu poder sobre quase todo o ‘‘território histórico’’ da China, encerrou o período dos ‘‘senhores da guerra’’, que, espelhados em trajetórias feudais, rasgavam o país para compor suas zonas de influência e ignoravam poderes constituídos.
Esse quadro de turbulência ilustrava a decadência chinesa, acentuada na última dinastia, a Qing (1644-1911). O país, dono de história milenar, viveu séculos como a civilização tecnologicamente mais avançada do planeta e atingiu seu apogeu na dinastia Tang (618-907). Mas, sem uma Revolução Industrial como a ocorrida no Ocidente, foi ultrapassada e amargou, sobretudo na dinastia derradeira, as vicissitudes de um país condenado ao status de periférico. Teve, por exemplo, de entregar concessões territoriais às potências coloniais e abrir suas fronteiras à venda do ópio trazido por britânicos no século 19.
A revolução de 1949 eliminou a presença colonial na China, embora vestígios importantes tenham permanecido. O Reino Unido devolveu Hong Kong em 1997, e Portugal entregou Macau na virada de 19 para 20 de dezembro último.
Se Mao, em 1949, trouxe centralização administrativa e considerável avanço na disputa com o colonialismo, o líder nacionalista chinês Sun Yat-sen lançou antes as bases políticas para que a China evoluísse politicamente. Ele liderou a implantação da república, que teve o caminho aberto com derrubada do sistema imperial e da dinastia Qing em 1911.
A chegada da república, no entanto, não estancou a hemorragia política chinesa. Quase quatro décadas depois, foi a mão-de-ferro do maoísmo que trouxe, nos primeiros anos da Revolução, pinceladas de estabilidade ao ‘‘Império do Meio’’ (significado de zhongguo, a palavra que designa o país em chinês).

Revolução Cultural
A partir de 1966, com o objetivo de recuperar poder político, Mao Tse-tung promoveu ‘‘uma revolução dentro da revolução’’. O ‘‘Grande Timoneiro’’ sentia que os seguidos fracassos de sua estratégia econômica fortaleciam um setor mais pragmático e menos ortodoxo do Partido Comunista, do qual fazia parte um dirigente chamado Deng Xiaoping.
Mao, para reaquecer o fervor revolucionário e se fortalecer, promoveu uma radicalização de suas teses políticas, inaugurou um intenso culto à sua personalidade e patrocinou uma implacável perseguição aos seus adversários, disfarçando-a de cruzada contra ‘‘valores feudais e burgueses’’.
As reverberações dessa Revolução Cultural ultrapassaram as fronteiras chinesas. Serviram, no Ocidente, de inspiração a movimentos de contestação, particularmente estudantis, atingindo seu ápice nos protestos de Paris em 1968. Mao e seus guardas vermelhos viraram até referência estética.
Para a China, a Revolução Cultural, que durou até a morte de Mao em 1976, representou um desastre histórico. Suas lutas intestinas mataram cerca de 1 milhão de pessoas e estagnaram a economia, já que o país vivia mergulhado na disputa política. Hoje, até mesmo ideólogos do PC se referem ao período entre 1966 e 1976 como a ‘‘década perdida’’.
Com o país economicamente arrasado, fortaleceram-se os ‘‘pragmáticos’’, setor que tinha sido alvo de Mao na Revolução Cultural e que admitia concessões ao capitalismo em busca de melhoria nas condições de vida da população. Após a morte de Mao, Deng Xiaoping venceu as lutas palacianas e iniciou, em 1978, as reformas pró-economia de mercado. ‘‘Não importa a cor do gato, o importante é que ele mate o rato’’, sintetizou o mago da alquimia ‘‘capitalismo na economia, Partido Comunista no poder’’.
Deng, que morreu em 1997, manteve o culto a Mao, embora suavizado em comparação com a histeria da Revolução Cultural. Sua intenção, seguida hoje pelo presidente Jiang Zemin, é associar a imagem do líder histórico do PC à mensagem de que o partido é o responsável pela atual decolagem econômica do país. O PIB chinês cresceu, entre 1978 e 1998, a uma média anual de 9,8%.
O ‘‘Império do Meio’’, portanto, volta a ter uma das economias mais importantes do planeta e que, em tamanho do PIB, vai rivalizar com a norte-americana talvez já em 2015.
Em termos de riqueza per capita, um longo caminho aguarda a China para ela chegar a uma eventual paridade com sociedades mais industrializadas. Também o caminho do crescimento econômico deve atravessar períodos de turbulência, como um aumento de tensões que inviabilize a mistura de uma economia aberta com um sistema político fechado. Essa ruptura significaria o fim do reinado do Partido Comunista, que passaria então à longa história chinesa como responsável por ‘‘um curto, mas importante período de renascimento do país’’.

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