São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 1999



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  PRIMEIRO CONFLITO VERDADEIRAMENTE MUNDIAL TEVE SEU ENSAIO NA ESPANHA E DEIXOU ENTRE 40 E 50 MILHÕES DE MORTOS; FEITA A PAZ, NÃO HOUVE MAIS UM SÓ DIA SEM GUERRA

O pesadelo de todas as guerras | Espírito da época

O pesadelo de todas as guerras

JANIO DE FREITAS
do Conselho Editorial

Ao século dos conflitos não convinha um nascimento normal. Sua chegada estabeleceu logo uma situação de desarmonia entre o tempo e a história. A tese de que o século 19 não terminou historicamente em 1900, como ao século 20 competia exigir-lhe, mas só em 1914, ao se iniciar a Primeira Guerra Mundial, há muito está livre de ressalvas importantes.
Nada de mais, então, que o desencontro continuasse pelo século afora. Já foi dito, até, que o tresloucado século 20 abandonou o cenário histórico ao sucessor já em 1945, ao inaugurar-se a era nuclear com a bomba atômica sobre Hiroxima. Seria o menor dos séculos, e talvez merecesse mesmo esse nanismo cronológico, para acompanhar a sua personalidade de anão moral.
Na sucessão de desencontros entre tempo e história, a Segunda Guerra dá contribuição fértil. Consta, em seus anais, que começa em 1º de setembro de 1939, quando a Alemanha lança suas “panzer divisionen’’ contra a Polônia, blindados inovadores contra a heróica e velha cavalaria. E, reação imediata, Inglaterra e logo França declaram guerra à Alemanha, nos termos do tratado de defesa mútua firmado, menos de seis meses antes, com os poloneses de quem Hitler exigia um pedaço do território (Danzig, hoje Gdansk, a do movimento Solidariedade).
Quando de tal pretenso início, no entanto, Hitler já havia anexado a Áustria à Alemanha em março de 1938, em setembro apropriara-se de parte da Tchecoslováquia e, em março de 1939, do restante desse país. A Itália, cujo sistema fascista muito inspirara Hitler, já firmara com a Alemanha um “eixo econômico e militar’’, invadira a Abissínia e pretendia da França a entrega de Nice, da Savóia e de Tunis.
Nem por isso a Grã-Bretanha, a França, os Estados Unidos, a Bélgica e a União Soviética, entre outros, se haviam oposto ao belicismo de Hitler e Mussolini. Praticavam a chamada “política de apaziguamento’’, uma atitude que misturava temor e cinismo, expressos com perfeição pelo primeiro-ministro inglês, Chamberlain, como defesa para a recusa de socorro à Tchecoslováquia: “É um país distante do qual nem sabemos nada’’.
As palavras eram menos desavergonhadas, mas a política já era aquela desde 1936, por parte dos países ainda filiados à Liga das Nações, desastrada precursora da ONU, como dos dois países do Eixo. Um episódio terrível o mostrara: a Guerra Civil Espanhola.
Em 17 de julho de 1936, as tropas do Marrocos espanhol se sublevam e partem para a Espanha, onde, no dia seguinte, focos do levante espocam em guarnições militares do país todo. Fascistas e monarquistas se uniam, sob os estandartes da Igreja Católica na Espanha, para derrubar a república instaurada em 1931.
A Guerra Civil Espanhola que então começa, e cuja ferocidade individual excedeu o imaginável, figura na história como o “campo de ensaio’’ adotado por Hitler e Mussolini para as inovações bélicas destinadas aos seus projetos de conquista e dominação. Teste e ensaio, por certo, mas muito mais do isso. Se a Guerra Civil foi internacionalizada é porque não se tratava apenas de uma disputa entre facções nacionais, com românticas e caridosas ajudas externas a um lado e a outro. Algo politicamente maior estava em jogo.
De quase todo o mundo correram voluntários para as brigadas internacionais que defendiam a república, e grande parte deles integrava o forte apoio da União Soviética aos republicanos, incluvise em armas e orientadores político-militares. A Alemanha mandou a sua Legião Condor, ali inauguradora dos bombardeios maciços a cidades, Mussolini mandou soldados, aviões e pilotos. Mas a principal tática dos alemães em todas as suas futuras invasões _a conjugação de velozes blindados e aviões de mergulho, os famosos Stukas_ nunca foi testada ou ensaiada na Espanha.
São evidentes, embora historicamente relegadas pela idéia do ensaio, as finalidades estratégicas da presença de alemães e italianos na guerra espanhola. Uma Espanha fascista daria proteção, pelo sul, a invasores da França _utilidade que logo se mostraria. Teria o mesmo papel em relação ao norte da África, compartilhado por ambições de Hitler e de Mussolini. E ofereceria o controle fácil da entrada e de grande parte do Mediterrâneo, que Mussolini pretendia fosse visto como um “lago italiano’’.
A ação decisiva de alemães e italianos na Espanha já é, mais do que ensaio, a ofensiva fascista sobre a Europa. É o primeiro capítulo da humilhante invasão da França. Mas, tal como ainda hoje, não foi visto assim pela temerosa “política apaziguadora’’ de Grã-Bretanha, Bélgica e da França mesma, nem pela ilusão da “política isolacionista’’ dos Estados Unidos. A União Soviética percebeu os valores envolvidos na Espanha, mas, ainda assim, retirou todo o seu apoio aos republicanos para evitar um confronto direto com a Alemanha. (Seis meses depois da derrota republicana, Stálin faria com Hitler um pacto de não-agressão e de divisão da Polônia, invadida pelos alemães quatro semanas antes).
Em 27 de março de 1939, os fascistas espanhóis, alemães e italianos dominavam Madri. O general Franco, que logo iniciaria sua ditadura de quatro décadas, sentava-se sobre esta contabilidade sinistra: 183 cidades devastadas, 500 mil casas destruídas, 1 milhão de mortos, 500 mil exilados, 2 milhões de presos.
Do fim da guerra espanhola a meado de maio de 1940, decorridos apenas um ano e dois meses, os alemães acrescentam uma sucessão avassaladora às suas anteriores conquistas da Áustria e Tchecoslováquia: meia Polônia, Dinamarca, Noruega, Bélgica, Holanda, Romênia e França.
Como complemento da tragédia, a Itália invade a Grécia, depois ocupada também pelos alemães, e a Somália (África). Hungria e Bulgária aderem ao Eixo, e os alemães esticam-se ao norte da África. E em agosto do mesmo 1940 começa a batalha da Inglaterra, a longa luta área nos céus ingleses entre a Luftwaffe alemã e a RAF britânica. A URSS toma o pedaço da Polônia cedido por Hitler e, por sua conta, toma outro da Finlândia. A história não conhecera tamanha mudança radical em tão pouco tempo.
Caso se observem mais os fatos, em si, do que o sentido dos fatos, o início da Segunda Guerra Mundial não está no começo da guerra civil espanhola, mas, três anos depois, na invasão da Polônia que inaugura a remexida vertiginosa das fronteiras e domínios. Nesse caso, porém, pode-se questionar que aquela é uma guerra européia _seu território verdadeiro é a Europa, as motivações são européias, e europeus, os beligerantes. Mesmo quando a Alemanha invade a URSS em 22 de junho de 1941, apesar do tratado que assinaram 21 meses antes, a guerra se trava na Rússia européia.
A conciliação de tempo, história e conceitos só se dará cinco anos e meio depois de iniciada a Guerra Civil Espanhola e dois anos e dois meses depois de declarada a guerra entre Alemanha, Polônia, Grã-Bretanha (exceto Irlanda, que nem entrará na guerra) e França. Ou, mais precisamente, em 7 de dezembro de 1941, quando o Japão ataca todas as bases americanas e inglesas alcançáveis por seus recursos militares.
Com o fato consumado, os Estados Unidos enfim abandonam a “política de isolacionismo’’ e, além do Japão, declaram guerra também à Alemanha e à Itália. Vários países das Américas Central e do Sul fazem o mesmo. Entre eles o Brasil, em cujas costas os alemães afundaram alguns navios brasileiros. A guerra está em todos os mares e em todos os continentes: a guerra é verdadeiramente mundial.
E assim vai até 8 de maio de 1945, quando a Alemanha se rende. Em junho e julho os americanos recebem sinais da disposição japonesa de rendição, mas os desconsideram até lançarem as bombas atômicas sobre as populações civís de Hiroxima, em 6 de agosto, e Nagasaki, dia 9. A capitulação japonesa foi oficializada uma semana depois.
O número de mortos da guerra é muito incerto. Houve os fugitivos que não deixaram pistas e assim entraram nas listas de perdas. As deportações, da Alemanha e da Europa Oriental para a URSS, engrossaram com desaparecidos as listas de mortos. Alguns números de mortes, civis e militares foram estabelecidos antes que à política e à propaganda conviesse manipular muitos deles: URSS, 17 a 20 milhões; Alemanha, 6 milhões; Polônia, 5,8 mihões; Japão, 2 milhões; Iugoslávia, 1,6 milhões; Grécia, 600 mil; França, 570 mil; Romênia, 460 mil; Itália, 450 mil; Hungria, 430 mil; Estados Unidos e Grã-Bretanha, 400 mil cada; Holanda, 210 mil; Bélgica, 88 mil. O total, com a necessária inclusão das altas perdas asiáticas e na Oceania, foi estimado entre 40 e 50 milhões. Deles, 6 milhões seriam de judeus vitimados pelo racismo.
Feita a paz, desde então não houve no mundo um só dia sem guerra.

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