São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 1999



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  BRANDIDA POR CONSERVADORES COMO SINAL DE VITÓRIA DO MERCADO, A RUÍNA COMUNISTA FULMINOU OS DEBATES SOBRE JUSTIÇA SOCIAL, MAS O MUNDO NÃO FICOU MELHOR

Cicatrizes vão de Berlim até Seattle | Espírito da época

Cicatrizes vão de Berlim até Seattle

MARCELO LEITE
especial para a Folha

Nove de novembro de 1989 foi talvez o dia em que mais mudou o breve século 20 de que falou Eric Hobsbawm. Mudou tanto, e tão rápido, que acabou. Só 72 anos haviam transcorrido desde que a Revolução Russa inaugurara o pseudoparaíso socialista na Terra. É duvidoso que sua ruína tenha mudado o mundo para melhor.
A “queda do Muro de Berlim” tornou-se um lugar-comum ideológico, tão infértil quanto a “globalização”. Ambos são brandidos por conservadores e neoconservadores como um ponto final. O mercado venceu. O efeito pretendido é o de fulminar qualquer debate em favor da justiça social ou de um caminho nacional autônomo para o desenvolvimento. Supostamente, essas idéias não têm mais cabimento. Não cabendo mais em si mesmo, o capitalismo vitorioso de certo modo converteu-se ao pior dogma do marxismo derrotado: um fim e uma finalidade para a história.
No futuro, a queda do Muro de Berlim talvez se torne inseparável do aborto da Rodada do Milênio na Batalha de Seattle. Um local que parece ter sido escolhido a dedo pela Organização Mundial do Comércio para simbolizar a globalização: batizada com o nome do chefe de uma nação indígena subjugada, a cidade foi parcialmente incendiada numa revolta de brancos contra trabalhadores chineses, exatos cem anos antes de cair o Muro da Vergonha.

Intolerância
Na Berlim de 1989 não havia índios nem chineses, só vietnamitas e negros de Angola e Moçambique, estudantes ou quadros em formação provenientes de países socialistas do Terceiro Mundo adotados pelo Segundo. Assim que o muro caiu, caiu também a inibição da selvageria enrustida em alguns “ossis” (alemães-orientais), que passaram a se fantasiar de skinheads e a caçar estrangeiros pelas ruas.
É algo difícil de esquecer, a hostilidade de skinheads junto ao telão da Daimler-Benz ao lado da Alexanderplatz, centro de Berlim ainda Oriental, na final da Copa de 1990. Munidos de tacos de beisebol e pedras, preparavam-se para comemorar a vitória da futura pátria sobre a Argentina.
A abertura permitiu que muita intolerância aflorasse também no lado ocidental da Alemanha. Os “ossis” eram ridicularizados quando viajavam ao Oeste, graças a seu desmedido apetite por bananas e jeans.
Quando eram os “wessis” que se bandeavam para o Leste, os pioneiros dedicavam-se a levar a mensagem mais caricata do capitalismo: fraudes e truculência gerencial. Contos do vigário e desemprego multiplicavam-se. Seus primeiros aliados foram os quadros mais corruptos do antigo aparelho comunista.
Pelo Muro de Berlim arrombado passaram ainda, ao longo daqueles dois meses de 1989, hordas de outros europeus orientais. Lotando trens, ônibus e minúsculos Fiats, voltavam para suas cidades do outro lado da antiga Cortina de Ferro carregados de leite e sabão em pó. Os berlinenses entravam em pânico, discriminando os visitantes indesejados.
Era difícil, naquela atmosfera, acreditar que caminharia bem algo que começava tão mal. Apesar disso, a euforia só não tomou conta de espíritos genuinamente taciturnos, como o do dramaturgo alemão-oriental Heiner Müller.
Lastreado por seu charuto e lentes de fundo de garrafa, Müller afirmou que o socialismo não havia morrido. Não, pelo menos, seu programa, pois os pobres do mundo não tinham desaparecido com o muro. Na sua opinião, o conflito apenas se transferia do eixo Leste-Oeste para o Norte-Sul. Seattle, após dez anos, ao que parece lhe faz justiça.
Seria cegueira negar que o mundo tenha mudado depois de 9 de novembro de 1989. Ou deixar de rejubilar-se com a queda de uma tirania, pois não era outra coisa o socialismo existente. Os 20% de alemães que querem o muro de volta são perdedores como os russos que votam nos comunistas e saem à rua com retratos de Stálin.
A maior parte da população mundial tem razões para perguntar-se de que lado do muro caído se encontra, se entre os ganhadores ou perdedores. Na Rússia, muito poucos ganharam e cada vez menos são os que estão ganhando com a deterioração do país _um dos raros, fora da África, em que a expectativa de vida está regredindo.
Na África a extensão da barbárie só aumentou. Lá não faz a menor diferença se o Muro de Berlim caiu ou não. A guerra civil e a fome continuam matando centenas de milhares de pessoas. A Aids campeia como em nenhum outro lugar, uma tragédia de saúde pública para a qual a parte do mundo no lado certo do muro ainda não despertou, talvez porque não seja visualmente tão chocante quanto braços e pernas decepados por minas e facões.
Na Ásia, alguns dos países mais populosos do mundo _China, Índia e Indonésia_ entram no ano 2000 sob enorme estresse social e ambiental. A China, com níveis de poluição altíssimos já antes do boom capitalista, corre o risco de intoxicar-se com o próprio desenvolvimento. A Índia sustenta sua agricultura bombeando uma quantidade de água de seus lençóis freáticos acima da capacidade de reposição natural. A Indonésia, que em 1997 quase sufocou na fumaça do incêndio de suas florestas, caminha à beira de um precipício político.
A economia mundial prossegue dilapidando, apesar de toda a fanfarra de 1992 no Rio, seu capital natural. Nenhum desses estoques é suficiente para dar a cada um dos 6 bilhões de habitantes da Terra um nível de vida comparável ao norte-americano ou europeu, não pelo menos com as atuais tecnologias e formas de distribuição. Tentativas de solução multilateral, como os protocolos de Kyoto (mudança climática) e de Cartagena (biossegurança/biodiversidade) enfrentam impasses em tudo similares aos de Seattle.
O Muro de Berlim caiu, o mundo mudou. Nem por isso tornou-se um lugar melhor para viver.

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