São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 1999



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  IRRADIADA A PARTIR DA FRANÇA, REVOLTA ESTUDANTIL NÃO VISAVA O PODER, MAS COLOCOU EM CIRCULAÇÃO UMA NOVA UTOPIA, BASEADA NA CRÍTICA AO AUTORITARISMO E NO DESEJO

Insurreição jovem mira o impossível | Espírito da época

Insurreição jovem mira o impossível

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Em 1968 a bola de neve cresceu e desceu morro abaixo a uma velocidade imprevisível. No dia 2 de maio, em incidente até que modesto, um grupo de estudantes da Universidade de Nanterre, subúrbio parisiense nas imediações de Versalhes, entrava em confronto com a polícia.
Oito dias depois, na “noite das barricadas”, 400 universitários e policiais saíam feridos, e 188 automóveis eram destruídos nas imediações da velha Sorbonne, no bairro estudantil do Quartier Latin (“A barricada fecha a rua, mas abre o caminho”, segundo pichação nos muros).
Os operários entraram a reboque. No dia 20, com 6 milhões de grevistas, o país já estava praticamente paralisado.
O movimento só terminou de verdade a 30 de junho, quando eleições legislativas antecipadas deram sólida vitória ao presidente Charles de Gaulle e derrotaram protagonistas e simpatizantes da breve “revolução”. A França, no entanto, por muitos anos não voltaria a ser mais a mesma.
Maio de 68 poderia ter ocorrido em outro mês do mesmo ano. Mas foi uma explosão com capacidade de expansão mundial da qual só a França era então capaz.
Caso surgisse na Bélgica, na Holanda ou na Áustria não teria impacto parecido. No final dos anos 60 ainda prevalecia a idéia de que a vanguarda do pensamento e da ação tinha um umbigo geográfico chamado Paris.
Greves estudantis seguidas de passeatas e de confrontos haviam sido registradas em outros países. Nos Estados Unidos, em Berkeley, protestava-se contra a Guerra do Vietnã.
Na Alemanha, sob a liderança de Rudi Dutschke, basicamente contra o rolo compressor ideológico do capitalismo em sua versão Guerra Fria. No Brasil, o alvo foi previsivelmente o regime militar. Mas só a França poderia na época detonar reflexões difusas em escala planetária.
Marshall MacLuhan era canadense, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, alemães, Mao Tse-tung, chinês, e Freud, austríaco.
O liquidificador parisiense era, porém, o único capaz de processar esse conjunto heterogêneo de idéias para produzir algo, em essência, libertário (“É proibido proibir”, dizia outra pichação).
Não foi uma revolução no sentido próprio da palavra. Os estudantes de Nanterre e da Sorbonne estavam desarmados, não apelaram para táticas de guerrilha urbana e, em definitivo, não pensaram em tomar o poder das mãos de De Gaulle.
O fato é que em pouquíssimos dias Daniel Cohn-Bendit, Alain Geismar e Jacques Sauvageot, líderes de um movimento que paradoxalmente dispensava a hierarquia de comando, eram exemplos personificados do inconformismo. Empunhavam um estandarte que rejeitava o enriquecimento e o sucesso individual na economia de mercado.
Maio de 68 também simbolizou a rejeição do racional, presente nas grandes empresas e nos partidos políticos tradicionais. (“Estejamos tranquilos: dois mais dois não são mais quatro”, lia-se em um muro da cidade). Em lugar da racionalidade prevalecia uma idéia difusa de hedonismo, de poesia, de prazer.

Revolução sexual
A revolução sexual dos anos 60 amadurecera para expressar sua dimensão política (“O sexo da noite sorri ao olhar unânime da revolução”, outra inscrição).
Mas isso não se dava segundo o pacifismo ingênuo dos hippies norte-americanos, do “faça amor, não faça guerra”. Em verdade, o movimento estudantil francês reivindicava o exercício do desejo como ato antiburguês por excelência (“Viver sem horas mortas, gozar sem entraves”, afirmava outra pichação).
Era a “política do corpo” contra os ícones da chamada sociedade de consumo ou contra a prosperidade material que o establishment da Quinta República, inaugurada ainda em 1958, oferecia aos que aceitassem as regras pragmáticas de seu jogo.
Uma óbvia utopia que a linguagem das pichações explicitava com incrível bom humor (“Sejamos realistas, peçamos o impossível”, ou então “Revolução, eu te amo”). Utopia irreverente (“Em breve, aqui, encantadoras ruínas”) ou que parafraseava o histórico ditado anarquista: “Estaremos salvos quando o último burguês for enforcado nas tripas do último burocrata”.
Os burocratas, no caso, eram os dirigentes da esquerda institucional, a começar pelo PCF (Partido Comunista Francês) e pela CGT (Confederação Geral dos Trabalhadores), seu braço sindical.
Por meio das greves que por vezes lhes escaparam ao controle, eles procuraram tirar proveito da revolta estudantil e encostar o governo na parede.
Obtiveram nos chamados Acordos de Grenelle, de 27 de maio, aumento de salários e vantagens trabalhistas.
É como se, do ponto de vista dos estudantes, Grenelle vulgarizasse idéias charmosas e imateriais. Mas, graças às barricadas, os assalariados passaram a morder uma fatia maior no bolo francês da renda, que crescera durante os anos anteriores, mais precisamente com o fim, em 1962, da guerra colonial na Argélia.
Apesar da violência dos confrontos, apesar dos estragos materiais, junto a significativa parcela dos franceses _42%, segundo pesquisa publicada pelo “France Soir”_ prevalecia a idéia de que o bom-mocismo era a tônica do movimento estudantil.
Uma opinião que começaria a mudar quando a paralisia do país secou a gasolina nos postos e começou a faltar pão em algumas padarias.
A classe média então se assustou. Foi basicamente ela que a 29 de maio respondeu aos estudantes na mesma linguagem das ruas: 800 mil pessoas desfilaram, em Paris, da Place de la Concorde ao Arco do Triunfo.
Multidão tão densa só voltaria novamente ao local 30 anos depois, para saudar os futebolistas franceses que conquistaram a Copa do Mundo.
Objetivamente, Maio de 68 não obteve para a França a reinversão de valores _éticos, políticos_ que desejava. Sua vitória foi bem mais modesta.
A reforma Edgard Faure, no ensino superior, facilitou o acesso à universidade, impondo-lhe uma hierarquia interna mais flexível e uma ampla descentralização curricular.
Não foi esse, no entanto, o saldo principal do movimento. Depois dele, e na década seguinte, tornaram-se menos confiáveis e dominantes as grandes máquinas produtoras de ação política e de conhecimento acadêmico.
O Partido Comunista pagou o preço por descender da dialética de Hegel. O poder deixou de ser combatido apenas dentro do Estado. Passou a ser pensado de forma crítica em outras fontes de geração, como na escola, nas artes, nos hospitais, no casal monogâmico. Surgem então as feministas, a antipsiquiatria, os novos filósofos e, um pouco mais para a frente, uma reflexão estética baseada na diversidade e que daria lugar ao pós-modernismo.

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