São Paulo, quinta-feira, 30 de dezembro de 1999



1914
1917
1929
1939
1945
1949
1968
1969
1979
1989
Brasil
Pioneiros
Galeria
 
   
 

Quase República | A Revolta da Vacina | Estado Novo | Regime Militar | Coluna Prestes | Revolução de 30 | Suicídio de Getúlio | Inauguração de Brasília | Diretas Já | Impeachment de Collor | Plano Real

APÓS OSCILAR ENTRE A TUTELA MILITAR E A DITADURA CIVIL, PAÍS TORNA-SE UMA DEMOCRACIA DE MASSAS NUMÉRICA, MAS NÃO ELIMINOU A EXCLUSÃO SOCIAL


Quase República

BORIS FAUSTO
especial para a Folha

As várias faces da República, ao longo do século 20, apresentam muitas vezes um aspecto tão contrastante com o conteúdo republicano que, apesar da continuidade do rótulo, somos tentados a falar em faces da anti-República.
Na virada do século 19, o regime político que vigorou no país até 1930 já se encontrava constituído. Responsáveis pelo advento da República, as correntes militares, divididas entre deodoristas e florianistas, sem projeto político claro, não tiveram forças para implantar um regime centralizador.
A República definiu-se como um regime liberal-oligárquico, federativo, na medida do figurino proposto e imposto pelos grandes Estados, com São Paulo à frente; ao mesmo tempo, rejeitava-se o federalismo extremo dos positivistas gaúchos. A República Federativa permitia uma ampla ação das elites políticas das unidades estaduais poderosas e servia aos interesses econômicos de classes regionais, com predominância da chamada burguesia do café, de caráter agrário-mercantil. O federalismo possibilitou também a formação de forças militares estaduais, que garantiam a autonomia dos grandes Estados, diante de eventuais ameaças do poder central. Como contrapartida, o Exército ficou em posição secundária e deixou de desempenhar um papel significativo nos dois primeiros decênios do século.
Em um país de escassa mobilização popular, as elites políticas puderam prescindir de uma participação eleitoral significativa. Dada essa circunstância e os mecanismos da fraude, facilitados pelo voto aberto, o controle político do país ficou nas mãos de um clube de notáveis, cujas dissensões _quando ocorriam_ possibilitavam uma certa competição eleitoral. Mesmo assim, na eleição mais competitiva do período 1889-1930, em que se defrontaram Getúlio Vargas e Júlio Prestes, menos de 6% da população compareceu às urnas.
A vitória da revolução de 1930, ao final de uma década marcada pela emergência da classe média urbana e pelas insurreições dos quadros médios do Exército, representou uma importante inflexão política. Gradativamente, as Forças Armadas foram se convertendo no principal sustentáculo do poder, beneficiadas, entre outras coisas, pelo reaparelhamento obtido por meio de generosos créditos orçamentários. O clube de notáveis deu lugar à presidência carismática, encarnada na pessoa de Getúlio Vargas.
Depois de um breve interregno de influência liberal-democrática, expresso na Constituição de 1934, outro projeto se afirmou: um projeto de modernização conservadora, que repelia o avanço da democratização. Acalentada pelos chefes militares, entre os quais se destacavam os generais Góis Monteiro e Dutra, assim como por Getúlio, essa perspectiva implicava a implantação de um regime autoritário que veio a concretizar-se com o golpe do Estado Novo. A crença nas virtudes do autoritarismo, para assegurar a ordem e promover o progresso do país, tinha muito a ver com o clima ideológico internacional, refletindo o descrédito da liberal-democracia, acentuado pela crise aberta em 1929.
Apesar da Carta de 1937 definir o Brasil como uma República (mas excluindo o federalismo), o Estado Novo foi, na verdade, uma ditadura civil, com forte influência militar, mostrando uma face nova da anti-República. Nos últimos anos do regime, ganhou grandes proporções a figura carismática de Getúlio, graças a suas realizações materiais e aos contornos simbólicos atribuídos ao personagem pelos novos meios de comunicação de massa. Ao mesmo tempo, esses foram os primeiros tempos de afirmação do esquema populista, que demonstrava uma percepção do papel que as massas poderiam desempenhar, dando ao getulismo uma vantagem nítida, no embate contra seus adversários liberal-democratas.
A queda de Getúlio, em 1945, abriu caminho, pela primeira vez na história brasileira, à implantação de um regime democrático. Com todas as ressalvas que possam ser feitas à democracia vigente nos anos 1945-1964, ela representou um avanço político pela restauração dos direitos da cidadania, pela formação de partidos nacionais, como o país jamais conhecera, pela presença popular na vida social e política, revelada, em planos diversos, pela mobilização em defesa do monopólio estatal do petróleo e pela crescente participação eleitoral.
Mas a democracia estava longe de consolidar-se. O suicídio de Getúlio, em 1954, abriu uma sucessão de crises, com um único hiato, representado pelo governo JK, cuja posse foi, aliás, assegurada pelo “golpe preventivo” do general Lott. Depois veio a eleição de Jânio e o episódio desastroso da renúncia, que acabou levando o país ao populismo radicalizado de Jango.
O final desse percurso é conhecido. O movimento de 1964 inaugurou, como expressão de uma das faces da anti-República, uma ditadura militar, apesar do arremedo de funcionamento das instituições representativas e do jogo eleitoral. Apesar também do esforço fracassado dos “castelistas”, no sentido de restabelecer no país um regime democrático conservador, purificado dos comunistas e livre das ameaças da chamada república sindicalista.
O regime de 1964 descartou o populismo, vestiu uma camisa de força no sistema partidário, tratando de legitimar-se sobretudo por seus êxitos econômicos. A cúpula do poder pode ser definida como um condomínio militar, em que nenhum líder era absolutamente dominante. O tempo dos grandes personagens, de figuras como Góis e Dutra havia passado, inclusive porque a legislação vigente impedia uma longa permanência no Exército, após se atingir o generalato.
A abertura, que o general Geisel definiu como lenta, gradual e segura, refletiu as aspirações e as pressões populares, mas teve muito a ver com o que ocorria no âmbito do Exército. Em síntese, a politização da instituição, no pior sentido da palavra, a criação de órgãos repressivos que se utilizavam da tortura e de todo tipo de violência, tendiam a romper a hierarquia das Forças Armadas, condição indispensável a seu funcionamento.
A frustração popular que se seguiu à derrota da campanha das eleições diretas não impediu que a democratização seguisse seu caminho e a eleição de Tancredo Neves despertasse tantas esperanças. A partir daí, o país aprendeu a conviver com o drama da morte de personagens importantes, a enfrentar os desmandos gerados pela aventura collorida, a que respondeu com o impeachment, respeitando-se as regras constitucionais. A implantação do Plano Real, associado à figura de FHC, permitiu às massas melhorar suas condições de existência, assim como avaliar com clareza o desastre que representa uma inflação descontrolada para as camadas pobres da população. Por outro lado, as Forças Armadas voltaram-se para sua missão constitucional, abandonando o papel político de poder moderador ou de poder militar.
Não obstante as agruras do desemprego, o vírus da corrupção, a vida cotidiana difícil nas grandes cidades, desenha-se, nos dias atuais, uma possibilidade efetiva de consolidação do regime democrático, ampliado pela participação social e política da sociedade civil. Com seus mais de 100 milhões de eleitores, o Brasil se converteu em uma democracia de massas, do ponto de vista numérico. Mas muito está por fazer para que o país venha a caraterizar-se como uma democracia substantiva, na dependência da incorporação dos excluídos e de um grande esforço educacional.
Sem que façamos apostas fechadas para o futuro, hoje, mais do que nunca, abre-se a alternativa de uma República verdadeiramente republicana, cujos traços essenciais se fixem de forma permanente, ao longo do tempo.

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.