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Cezar Migliorin
TENDÊNCIAS/DEBATES
O cinema independente atrapalha blockbusters?
sim
Cinema e democracia
A convivência entre filmes feitos para um público massivo e filmes que encontram formas de existir com orçamentos menores e sem a necessidade de distribuições gigantescas sempre existiu.
Quando pensamos em cinema, reconhecemos o fenômeno social e buscamos na memória os filmes que foram compartilhados por um grande número de pessoas. Lembramo-nos tão intensamente dos filmes que nos tocaram individualmente quanto daqueles que se tornaram eventos incontornáveis e parte de um imaginário coletivo.
Na vida de um espectador, "ET", de Steven Spielberg, e "Serras da Desordem", de Andrea Tonacci, convivem com harmonia e relevância. A importância do cinema como evento em uma comunidade e que afeta o indivíduo singularmente é parte da beleza da arte.
Assim, quando mencionamos um blockbuster, não estamos falando do sempre desejável sucesso de público, mas de uma lógica econômica com que operam certas produções cinematográficas. O que organiza, então, essa lógica? Como expressa o revelador nome, trata-se de uma lógica de ocupação total dos espaços, um arrasa-quarteirão.
"O que iremos ver hoje?", perguntam-se os amigos no sábado à noite. "Só há um filme em cartaz." "Então vamos nesse mesmo." Os amigos que desejam o cinema para, durante duas horas, abdicarem do olfato, do tato, do gosto e da motricidade e habitarem outras vidas, agora, com um só filme disponível, estão presos no mesmo, na repetição de uma lógica que não pode deixar nada por perto.
"E qual é o filme mesmo?", pergunta um dos amigos. "É... Aquele com aquela atriz engraçada da Globo..." "Aquele que é continuação de um sucesso do ano passado?"
Surpreendente seria se ele não fosse um sucesso. Lembremos que "Crepúsculo", de Bill Condon, estreou no ano passado ocupando 60% das salas do Brasil. Essa vem sendo a estratégia de distribuição dos blockbusters.
Mas o que está em jogo com essa lógica é uma segunda ocupação absoluta. Trata-se de uma totalização das possibilidades sensíveis dos espectadores e de um esvaziamento do que pode o próprio cinema. Na lógica do arrasa-quarteirão, o que desmorona é a possibilidade do cinema como uma experiência que possibilita descobertas e invenções de si e do mundo. Sua lógica é da homogeneização dos espectadores e de uma universalização do conteúdo que elimina os tons e especificidades locais.
A resistência a essa ocupação total das salas e das formas fílmicas é parte da história do cinema. Uma resistência feita por artistas, produtores e toda uma comunidade que entende que o cinema não é apenas um produto ou um elemento de uma cadeia econômica, em que um filme pode ser entendido apenas com números.
Assim, podemos nos perguntar em que sentido o lançamento de um filme como "De Pernas pro Ar 2", de Roberto Santucci, em mais de 700 salas, com renúncia fiscal do governo federal de R$ 3,2 milhões, R$ 2,5 milhões da RioFilme e coproduzido pela Globo Filmes, é um sucesso?
O cinema independente ou que não compartilha a lógica dos blockbusters está constantemente apontando para uma outra lógica de funcionamento, inclusive da sociedade. Por um lado, nos dizendo que a arte, com sua diversidade e desconforto, é necessária para a invenção de um povo. Por outro, nos colocando o limite da organização de tudo pela lógica do mercado, sobretudo quando ele tende ao oligopólio.
A resistência à homogeneidade é propriamente uma questão democrática. Trata-se de garantir direitos. Direito do país se pensar e se inventar com os meios do cinema e direito de todos à riqueza e às possibilidades de fruição estética. Sem esses direitos, sem resistir à lógica dos blockbusters, a invenção no cinema será cada vez mais restrita às elites que frequentam festivais e cinema patrocinados.
Se podemos dizer que filmes recentes como "A Febre do Rato", de Cláudio Assis, "A Cidade É uma Só?", de Adirley Queirós, "Sudoeste", de Eduardo Nunes, "Mãe e Filha", de Petrus Cariry, entre tantos outros, atrapalham os blockbusters, é porque há um cinema que resiste aos projetos totalizantes e que insiste em expressar sua relevância estética, política e também econômica.