No primeiro dia de filmagem, estavam atores e equipe a postos, mas ninguém conseguia localizar o diretor. Algum tempo depois ele é encontrado num café, escrevendo as cenas que seriam rodadas naquele dia.
Esse início já diz bem sobre o resultado do primeiro filme de Jean-Luc Godard, "Acossado". Desde o primeiro dia, o diretor já trabalhava fora das regras da indústria. Nada de roteiro pré-escrito, nada de horários fixos. O filme seguia conforme a inspiração.
O produtor se inquietava e a opinião geral era de que o jovem diretor fazia um filme que não seria possível montar.
Bem, o que sabemos depois disso é que com a história do gângster Michel Poiccard, que rouba um carro, mata um policial, foge e namora uma jornalista americana foi recebido de boca aberta pelo mundo do cinema.
Não era apenas o talento, aquele tipo de traço leve, inconfundível, do cineasta. Era a montagem, absolutamente revolucionária, que rompia com a continuidade clássica de forma radical, suprimia tempos, criava uma dinâmica que ainda hoje preserva a atualidade.
Essa montagem rimava bem com a narrativa fragmentária, com o gosto pela digressão, com a fotografia de Raoul Coutard, com a agilidade de Jean-Paul Belmondo, com a modernidade de Jean Seberg. Eram todos jovens, novos no ramo, acompanhavam Jean-Luc Godard em seu desejo de libertar o cinema de velhas amarras.
Sim, já naquele momento Godard fragmentava a narrativa, embora estivesse longe do que veio a fazer depois, razão pela qual este é o filme que mesmo os antigodardianos costumam admirar...
Se ele tivesse feito outros como esse... Mas essa não é a natureza de Godard: ali contrariava todas as regras do cinema francês da época para voltar a experimentar a liberdade que via nos filmes do cinema mudo (francês inclusive, talvez sobretudo).
Por exemplo: usava de maneira sistemática a câmera na mão, novidade na época. Raoul Coutard era o seu cúmplice na experimentação. Entre outras, usava filme fotográfico, de sensibilidade maior do que os filmes para cinema, para obter os efeitos desejados.
mundo real
"Acossado" passa também a percepção de que o cinema precisa sair do gabinete (do estúdio, do roteiro, das regras fixas) para agregar a vida, o contato direto com o mundo real.
Se contestava o cinema oficial ali, depois disso Godard trataria de contestar a si mesmo, filme após filme, como que fazendo da inquietude o centro de sua personalidade --e também do seu trabalho.
O exemplo mais evidente do caráter iconoclasta que ali começava a assombrar o cinema não está na tela.
Existe ali um escritor que a jornalista americana vai entrevistar. O papel é de Jean-Pierre Melville, o célebre cineasta. Mas Godard queria que fosse ninguém menos que Céline, até hoje o mais maldito dos escritores malditos franceses (até hoje: mas ali estávamos a 14 anos do fim da Segunda Guerra).
Amostragem magistral do que seria uma obra indispensável, "Acossado" abre caminho a todas as mudanças pelas quais passaria o cinema daquela época. Hoje não falta quem ache Godard um chato. Pode ser. Mas, caramba, é dali que vem o que de melhor nossos olhos veem.
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