Amazon restaura estúdio onde 'Cidadão Kane' e 'ET' foram filmados

Empresa gastou US$ 12 milhões e é a nova inquilina do complexo de produção

Cena do filme "Cidadão Kane" - Divulgação
The New York Times

Era como se as pessoas estivessem entrando em 1940, o auge da era de ouro de Hollywood.

O bangalô com paredes revestidas de estuque em que Orson Welles fumava seu cachimbo nos intervalos da rodagem de "Cidadão Kane" brilhava ao sol. Rosas brancas floresciam à beira do caminho que conduz à casinha que servia de camarim para Clark Gable e Vivien Leigh na rodagem de "E O Vento Levou". Seria fácil imaginar Cecil B, DeMille saindo a passo rápido da edificação que abriga a administração do estúdio, uma mansão inspirada por Mount Vernon [a casa de campo de George Washington], para dar uma bronca em um subordinado.

Mas as pessoas reunidas lá na semana passada não estavam presentes para celebrar o passado de Hollywood, e sim o seu futuro. O propósito oficial do evento era comemorar a restauração de quatro dos edifícios do complexo, um projeto que custou US$ 12 milhões. Mas os visitantes poderiam perfeitamente estar celebrando uma nova era na indústria do entretenimento —uma era marcada pela ascendência de gigantes do streaming como a Amazon Studios, nova inquilina do complexo de produção.

"Este lugar histórico volta a ganhar relevância", disse o sorridente Jeffrey Cooper, prefeito de Culver City, aos convidados, enquanto Jennifer Salke, presidente da Amazon Studios, cortava a fita verde e branca com uma tesoura gigante.

"Estou muito empolgada!", disse Salke, apertando a mão de Cooper. Ao lado, Albert Cheng e Jason Ropell, dois dos subordinados de Salke na empresa, aplaudiam a cena.

A Amazon está apenas alugando o espaço de 5,5 hectares conhecido como Culver Studios. A Hackman Capital Partners, uma companhia de investimento imobiliário, é dona do lote em formato retangular desde 2014, e atraiu a Amazon com um plano de investir US$ 600 milhões em sete novas construções e outras reformas no complexo cinematográfico, até 2021.

Mas a decisão da Amazon de transferir sua divisão de entretenimento para o Culver Studios, sob um contrato de locação de 15 anos, demonstra até que ponto os gigantes da tecnologia estão se integrando ao cenário, em Hollywood. Já não é possível separar tecnologia e entretenimento.

"Essa é uma maneira completamente harmoniosa de misturar mídia antiga e mídia nova", disse Michael Hackman, presidente-executivo da Hackman Capital Partners, em entrevista por telefone na quarta-feira.

O majestoso edifício da administração, por exemplo, não mudou muito desde as décadas de 1930 e 1940, quando DeMille e David Selznick, que produziu "E o Vento Levou" tinham escritórios lá. A diferença é que hoje os títulos nos cartazes que decoram as paredes da "mansão", como a edificação é conhecida, são de produções da Amazon, entre as quais "Manchester à Beira-Mar", "A Criada" e "Doentes de Amor".

"Gosto desse senso de história, porque cria um padrão ao qual devemos aspirar", disse Jeff Bezos, fundador e presidente-executivo da Amazon, a um jornalista que lhe perguntou sobre o Culver Studios durante uma festa na temporada do Oscar.

O Culver Studios pode ter um passado grandioso —"Touro Indomável" e "E.T. - O Extraterrestre" foram filmados lá, além do piloto para a série "Jornada nas Estrelas"—, mas o complexo também exemplifica os problemas que a indústria cinematográfica veio a enfrentar ao longo das décadas.

Sucessivos proprietários encontraram problemas para se adaptar às mudanças nas preferências da audiência, às novas tecnologias e à alta de custos. Isso resultou na venda de extensas seções da propriedade. (Condomínios agora ocupam parte da área em que Selznick ateou fogo a vastos cenários externos, para simular o incêndio de Atlanta.) Com as diversas ondas de consolidação no setor de cinema e a redução no número de filmes produzidos, o complexo passou a se dedicar à televisão, para manter as contas em dia - mais ou menos como aconteceu com o restante de Hollywood.

Em 2004, quando a Sony, em um momento de dificuldades, vendeu o complexo, os anos de investimento insuficiente estavam se fazendo sentir. Os velhos bangalôs reservados aos astros mostravam deterioração. Os estúdios de filmagem estavam defasados. A mansão tinha cheiro de casa velha. "O lugar precisava de muito trabalho, para dizer o mínimo", afirmou Hackman. (Ao contrário do que muita gente acredita, a mansão não serviu como cenário para a Tara de "E o vento Levou").

A Amazon, que tem cerca de 700 empregados em sua divisão de entretenimento, por enquanto alojados em um edifício anônimo em Santa Monica, começou a transferir pessoal para o Culver Studios no ano passado. Novas transferências acontecerão à medida que as reformas e novos edifícios forem completados.

"Temos de reconhecer as tradições e o legado de Hollywood mas também de reconhecer que temos a capacidade de mudá-los", disse Cheng, vice-presidente de operações da Amazon Studios, sobre a decisão de fazer do Culver Studios a sede da unidade.

No mês passado, a Amazon anunciou que alugaria um edifício de quatro andares em construção do outro lado da rua, o que lhe daria cerca de 32 mil metros quadrados de área construída em Culver City. (A Apple recentemente alugou um edifício a três quarteirões de distância para sua divisão de conteúdo original.)

A Amazon anunciou na quarta-feira que mais de 100 milhões de pessoas têm assinaturas do serviço Amazon Prime, que oferece acesso ao seu streaming de filmes e música, e a empresa espera adicionar US$ 5 bilhões em filmes e programas de TV ao seu catálogo este ano, de acordo com Doug Anmuth, analista do banco JPMorgan. As 44 séries originais oferecidas pela empresa incluem "The Marvelous Mrs. Maisel" e "The Man in the High Castle". A Amazon tem pelo menos 10 filmes em diversos estágios de produção, entre os quais "Life Itself", uma história romântica muito aguardada, com estreia marcada para 21 de setembro.

O boom do streaming deu novo ímpeto a outras centrais de produção cinematográfica independentes. No The Lot, um complexo de estúdios que no passado pertenceu à United Artists, as reservas de espaço dispararam. A Amazon está usando as instalações do The Lot para séries como "The Last Tycoon" e "Goliath". Já a Hulu vem recorrendo ao Sunset Gower Studios, que a Columbia Pictures abandonou em 1972, para gravar "I Love You, America", estrelado por Sarah Silverman

Alguns anos atrás, não havia imóvel mais tristonho em Los Angeles do que o Sunset Bronson Studios, um complexo com 10 estúdios de filmagem que a Warner Bros. usava antes de se transferir a Burbank, nos anos 30. No ano passado, a Netflix começou a usar os estúdios desse complexo, atraída por uma reforma de US$ 200 milhões e por um novo edifício de escritórios com 14 andares. Um novo edifício de cinco andares está sendo construído para a Netflix no Sunset Bronson, controlado pelo grupo Hudson Pacific.

Mas nada disso se equipara à restauração do Culver Studios, em parte porque a Hackman Capital dedicou imensa atenção aos detalhes.

"Eles se preocuparam até em recriar a textura e cor do cimento", disse Margarita Jerabek, diretora de recursos históricos da ESA, uma empresa de planejamento envolvida no projeto, apontando para os degraus que conduzem ao bangalô usado como camarim por Gable e Leigh tantas décadas atrás.

A estrutura branca do bangalô, com venezianas verdes e um gramado muito bem cuidado ao redor, fica bem ao lado da mansão construída há 99 anos para Thomas Ince, um inovador do cinema mudo que morreu em circunstâncias suspeitas em 1924. De acordo com "Movie Studios of Culver City" [estúdios de cinema de Culver City] (2011), livro dos historiadores Julie Lugo Cerra e Marc Wanamaker, muita gente disse ter visto o fantasma de Ince no local.

"Eu ainda não o vi", disse Cheng. "Mas tenho certeza de que ele está feliz. Planejamos cuidar muito bem de nosso novo lar".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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