Descrição de chapéu Fronteiras do Pensamento

Estudos de Joshua Greene buscam saída para polarização da aldeia global

Neurocientista indica caminhos para lidar com choque entre morais incompatíveis

Hélio Schwartsman
São Paulo

​É difícil definir se Joshua Greene deve ser descrito como filósofo, psicólogo ou neurocientista. Ele trabalha justamente na fronteira dessas três disciplinas e vem produzindo coisas muito interessantes.

Greene tem dois livros destinados ao público geral. O primeiro é uma coletânea de fotografias de Marilyn Monroe tiradas por seu pai, Milton Greene, amigo e sócio da atriz, que ele restaurou e organizou.

O outro é “Moral Tribes” (Ed. Penguin, R$ 53,13, 432 págs.), tribos morais, sobre moralidade e decisões racionais. Ambos são bastante estimulantes, mas minha missão aqui é falar só do segundo.

 

O ponto de partida de Greene é a constatação de que a evolução nos equipou relativamente bem para lidar com o antagonismo entre nossos interesses pessoais e a necessidade de cooperação. 

 

Viemos de fábrica com um sistema automático, isto é, uma série de emoções sociais como empatia, vergonha, gratidão, vingança, indignação, que conseguem operar o pequeno milagre de fazer com que sejamos suficientemente egoístas para prosperar como indivíduos e altruístas o bastante para manter coesos os grupos de que somos membros.

Durante as centenas de milhares de anos em que o homem viveu em tribos pequenas, homogêneas e nas quais conhecia cada pessoa com a qual interagia, esse sistema automático funcionou bem. 

Se o sujeito era sacaneado por um companheiro, entrava em cena a indignação, que o motivava a buscar reparação. Mas, como todos eram meio aparentados e muitas vezes amigos, a empatia também atuava para moderar o desejo de vingança, mantendo a punição em um nível que não deflagrasse uma guerra civil.

O problema é que esse sistema já não é mais tão eficaz no mundo moderno, em que habitamos megalópoles e convivemos com gente dos mais diversos backgrounds culturais. Pior, nessa nova condição, a moral de que nos utilizamos para nos relacionar com nosso círculo de parentes e amigos frequentemente se choca com a de outros grupos.

E qual é a moral certa para decidir, por exemplo, sobre o casamento gay? A que diz que isso é um pecado ou a que proclama que adultos capazes fazem o que querem desde que não prejudiquem terceiros? 

É o que Greene chama de tragédia da moralidade do senso comum. O choque entre diferentes morais incompatíveis está por trás não só das guerras culturais que marcam nosso tempo como também de conflitos reais e do terrorismo. Dá para sair dessa enrascada?

Segundo Greene, dá, mas precisamos encontrar uma metamoralidade que nos permita ao menos avaliar esses assuntos sob um prisma comum. E, para o autor, o mais perto que existe dessa universalidade é o utilitarismo.

A maximização do bem-estar e a redução do sofrimento é o que irmana todos os seres humanos independentemente de outros fatores, como sexo, religião e cultura.

O utilitarismo, porém, é um bicho complicado. Para começo de conversa, ele exige cálculo —de quanta felicidade para quantas pessoas eu preciso para compensar uma morte excruciante? Escapa, portanto, ao registro do sistema automático guiado pelas emoções. Na verdade, o utilitarismo frequentemente se choca com esse sistema.

Greene, que comanda o laboratório de cognição moral de Harvard, estuda em detalhes esses choques, submetendo voluntários a exames de imagem cerebral enquanto decidem dilemas morais do tipo “devo sacrificar uma pessoa para salvar cinco vidas?”.

Num plano mais abstrato, a maioria das pessoas aceita essa premissa, mas circunstâncias específicas de cada dilema podem mudar tudo. 

Se, para salvar as cinco vidas, o voluntário precisa matar alguém diretamente, o placar se inverte e a maioria rejeita a barganha. 

Os detalhes desses dilemas, conhecidos como “trolleyology” porque sempre envolvem desviar trens de pessoas que estão sobre os trilhos, são uma das partes mais ricas de “Moral Tribes”.

Outro problema com o utilitarismo é que, como está no mercado há dois séculos, já foi submetido ao escrutínio das escolas rivais e contém problemas difíceis de solucionar. 

Se o que conta é o total de felicidade e os interesses de todos valem a mesma coisa, o que impede o médico de sacrificar o paciente saudável que entrou em seu consultório e, com seus órgãos, salvar a vida de cinco doentes que precisam de transplantes?

Greene não ignora essas dificuldades. Pelo contrário, ele as expõe com clareza. Mas as explica não como falha fatal do utilitarismo e sim como efeito de um cérebro dual que opera com um sistema automático e outro mais reflexivo. 

Nessa interpretação, o choque entre nossas intuições morais e a posição utilitarista se deve ao fato de que o sistema automático é um mecanismo que aplica a lógica utilitarista de modo imperfeito. Como só muito raramente matar uma pessoa com as próprias mãos gera consequências positivas, a intuição que desenvolvemos foi a de rejeitar esse ato, ainda que, sob condições muito específicas, ele possa ser a solução correta.

Mesmo quem não concorda haverá de convir que as ideias de Greene são engenhosas.

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