Spotify foi força propulsora na alta do streaming de música, e agora quer lucrar

Serviço coloca ações na Bolsa de Valores de Nova York; capitalização pode exceder os US$ 20 bilhões

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Serviço de streaming Spotify entra na Bolsa de Valores de Nova York nesta terça
Serviço de streaming Spotify entra na Bolsa de Valores de Nova York nesta terça - Lucas Jackson/Reuters
 
The New York Times

Nos dias iniciais do Spotify, quando a empresa tinha só uma dúzia de funcionários em um pequeno escritório em Estocolmo, Daniel Ek, um de seus fundadores, gostava de compará-la à Apple e ao Google.

Era o ano de 2008, e a indústria fonográfica tradicional estava entrando em colapso. Mas quando o Spotify lançou seu serviço de streaming, em alguns poucos países europeus, se aferrou a uma ambição que deveria ter parecido impossível: desafiar os gigantes do Vale do Silício e se tornar o principal veículo mundial de música, com um modelo híbrido combinando assinaturas gratuitas e pagas, que enervava as gravadoras.

Passada uma década, a startup sueca provou ser uma competidora digna de respeito, e hoje tem 157 milhões de usuários em todo o mundo, 71 milhões dos quais pagantes. O número de assinantes pagantes é cerca de duas vezes superior ao da Apple, que enfim decidiu ingressar no mercado de música por assinatura, três anos atrás.

E na terça-feira (3), em um ritual que marca o sucesso de qualquer startup, as ações do Spotify passarão a ser negociadas na Bolsa de Valores de Nova York, e a capitalização de mercado da empresa pode exceder os US$ 20 bilhões. Para reafirmar a imagem desordenadora que ela sempre busca promover, a companhia abriu mão do circo tradicional das ofertas públicas iniciais, em favor de um processo raramente usado —e potencialmente arriscado— de listagem direta, sob o qual não há emissão de ações novas e os atuais detentores de ações da empresa podem começar a vendê-las diretamente em bolsa a partir da data inicial.

O caminho futuro do Spotify está longe de claro. A empresa jamais registrou lucro. O lançamento direto de ações pode dar errado, assustando os investidores. Seus concorrentes continuam a ser gigantes como a Apple, Amazon e Google. E o relacionamento entre o Spotify e o setor de música, do qual ele depende para os milhões de canções que oferece em streaming, é complicado desde o começo.

"Não acredito que o setor teria adotado o modelo de assinaturas sem a persistência de Daniel", disse Richard Greenfield, analista de mídia da BTIG Research, "Se dependesse das gravadoras, ele teria fracassado anos atrás". 

Em sua defesa, o Spotify pode apontar para seu papel na virada financeira do setor de música. Depois de 15 anos de declínio que fizeram do setor um exemplo negativo para todas as mídias tradicionais na era da internet, o faturamento com música gravada começou a melhorar acentuadamente em 2015.

REVOLUÇÃO

No ano passado, o faturamento total do setor de música nos Estados Unidos —que inclui vendas de CDs, downloads de música e assinaturas de serviços como o Spotify— chegou a US$ 8,7 bilhões, o mais alto em dez anos, e o streaming respondeu por 65% do total, de acordo com a Recording Industry Association of America (RIAA), a organização das gravadoras norte-americanas.

O Spotify prevê que até o final de 2018, terá 96 milhões de assinantes e receita de US$ 6,5 bilhões, de acordo com documentos financeiros recentes.

Mas a revolução do Spotify vai além dos números. O streaming também trouxe uma mudança no negócio em si, transformando o modelo financeiro subjacente e reescrevendo as regras de como se faz um hit. Com o streaming, uma canção não é um item separado a ser comprado e guardado, como acontece com um CD ou download; ela é parte de um vasto pool de música a que os ouvintes têm acesso com um clique. Deliberadamente, o serviço não difere muito daquilo que a geração milênio se acostumou a encontrar em sites piratas de música como o Napster e o Grokster.

"Tudo isso funcionou porque reconhecemos o comportamento do consumidor", disse Ek em apresentação a investidores no mês passado. "Os fãs queriam toda a música do mundo, de graça e imediatamente. O que fizemos, diante disso, foi construir uma experiência melhor".

Ek e o investidor sueco Martin Lorentzon fundaram o Spotify em 2006. O serviço deles foi criado em parte para imitar a experiência da pirataria, mas operando legalmente e pagando royalties.

"A música era importante demais para mim, e eu não podia permitir que a pirataria derrubasse o setor", escreveu Ek em uma carta incluída no prospecto enviado pelo Spotify aos investidores. A empresa não quis comentar para este artigo, citando o período de silêncio compulsório que deve respeitar antes que suas ações comecem a ser vendidas.

No começo, o Spotify foi concebido como um serviço gratuito, bancado por publicidade. Mas Ek e sua equipe perceberam que as gravadoras e as editoras de música se disporiam mais a conceder licenças se o Spotify também tivesse uma opção de acesso pago, e desenvolveram o chamado modelo "freemium". Os usuários podem ouvir qualquer canção gratuitamente, com publicidade, ou pagar US$ 10 ao mês para remover os anúncios e obter benefícios adicionais, como o de ouvir canções offline.

O serviço gratuito tem como objetivo atrair futuros clientes pagantes; de acordo com o Spotify, 60% dos novos anunciantes começam como usuários gratuitos.

Executivos do setor de música envolvidos nas negociações iniciais de licenciamento com o Spotify se impressionaram com a tecnologia da empresa e com sua abordagem. Ainda assim, a ideia de oferecer música gratuitamente era preocupante. Por isso, como condição para a concessão de licenças, as grandes gravadoras e a Merlin, uma associação setorial que representa selos independentes, receberam participações acionárias, que agora valem bilhões de dólares, no Spotify. Todas elas declararam que quaisquer lucros extraídos da venda dessas ações serão compartilhados com os artistas, ainda que não esteja claro exatamente como isso vai funcionar.

Assim que o Spotify se firmou (e começou a operar nos Estados Unidos, em 2011) as gravadoras descobriram que as assinaturas do serviço produziam receita recorrente e constante, um alívio para os altos e baixos sazonais do setor.

"Quando uma pessoa entra, aqueles ciclos imprevisíveis que costumávamos encontrar são eliminados", disse Ole Obermann, vice-presidente de operações digitais da Warner. "Na maior parte dos meses do ano, estaríamos no vermelho, e teríamos de contar com um grande pico de vendas na temporada de festas para garantir nosso lucro anual".

Com a remoção da barreira do custo para ouvir música, o comportamento do consumidor começou a mudar. As gravadoras independentes disseram que sua música estava sendo mais ouvida. Playlists programadas com uma mistura de supervisão editorial e aprendizado por máquina começaram a influenciar o que as pessoas ouvem; de acordo com o Spotify, 31% da música ouvida no site agora vem de playlists.

HITS

Mas até mesmo os maiores defensores do Spotify no setor de música, como Daniel Glass, do selo Glassnote, perceberam que o streaming e a mídia social criaram um efeito de rede que enfatiza hits acima de tudo.

"Lembro-me de conversar com empresários e artistas e explicar que eles seriam pagos; streaming é o futuro, quer você goste disso, quer não", disse Glass, cuja gravadora tem no catálogo grupos como Childish Gambino e Mumford & Sons. "Mas você precisa de hits".

O Spotify diz que sua missão é "destravar o potencial da criatividade humana ao dar a um milhão de artistas criativos a oportunidade de viver de sua arte". Mas suas relações com artistas continuam a ser delicadas. Os superastros de primeiro escalão, como Taylor Swift ou Adele, perceberam que ainda podem vender milhões de CDs se mantiverem sua música fora dos serviços de streaming, ao menos por algum tempo (já Ed Sheeran e Drake adotaram o formato plenamente). 

E muitos músicos que não são tão famosos, de artistas independentes a grandes compositores, dizem que a complexidade econômica do modelo —cada clique em uma canção vale apenas uma fração de centavo de dólar, a ser dividida entre o Spotify, as gravadoras, as editoras de música e, por fim, os músicos e compositores— torna impossível para quem não for uma estrela pop viver do streaming.

"O modelo do streaming em seu formato atual é fundamentalmente desfavorável aos artistas de nível médio e aos artistas emergentes", disse Blake Morgan, músico independente, dono de uma gravadora, e crítico declarado do Spotify e do Pandora, outro serviço de streaming. "Um por cento dos artistas ficam com 90% da receita".

E será que o Spotify mesmo conseguirá sair do vermelho? Nos últimos cinco anos, a companhia registrou um prejuízo líquido de US$ 2,8 bilhões, e a maioria do dinheiro que fatura é usado para pagar royalties dos direito autorais da música. O modelo "freemium" da empresa significa que ela precisa subsidiar os custos dos milhões de usuários que não pagam.

"Fazer da empresa o maior serviço mundial de streaming e assinatura de música no planeta custou caro", disse Barry McCarthy, vice-presidente financeiro do Spotify, na apresentação da empresa a investidores —McCarthy foi vice-presidente de finanças da Netflix, uma conexão que ele mencionou diversas vezes.
O Spotify tem um percurso claro rumo ao lucro, disse McCarthy, apontando que, embora a empresa continue deficitária, seu prejuízo operacional vem caindo como porcentagem do faturamento, e que seu fluxo de caixa livre foi positivo nos dois últimos anos.

Ainda assim, ele disse que, pelo futuro previsível, o Spotify continuaria a realizar investimentos para promover o crescimento —desconsiderando o lucro. O preço que as ações do Spotify atingirão pode depender de por quanto tempo Wall Street manterá a paciência com essa estratégia.

Glass, da gravadora Glassnote, disse que jamais teve dúvidas sobre o  modelo "freemium". Amostras grátis fazem bem aos negócios, ele disse, recordando os dias em que trabalhava na lanchonete do tio em Brooklyn, na adolescência.

"Todos os bons clientes —mesmo os novos— recebiam amostras grátis do especial do dia", disse Glass. "Hoje é dia de brisket. Experimente o coleslaw".

"E essas pessoas um dia voltavam e pediam o prato que tinham experimentado. Gastavam mais dinheiro", ele disse.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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