Exposição na Cinemateca retrata Brasil encurralado pela violência do Estado

Organizada pelo Instituto Vladimir Herzog, mostra 'Sobre Nós' traz obras que capturam momentos de luta pela democracia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O Brasil que surge de um dos galpões da Cinemateca Brasileira a partir desta terça-feira (2) é um país de palavras de ordem e gritos de protesto.

Organizada pelo Instituto Vladimir Herzog, a exposição "Sobre Nós – 60 anos de Resistência Democrática no Brasil" traz filmes e imagens que capturam momentos de defesa da democracia e luta pela liberdade.

A imagem em preto e branco mostra um grupo de pessoas marchando em uma rua de uma cidade, segurando uma faixa grande com a frase 'Amanhã vai ser outro dia!'. Ao fundo, é possível ver edifícios comerciais com letreiros, incluindo um que diz 'BOLSAS CALÇADOS'. A manifestação parece ocorrer em um ambiente urbano movimentado.
Manifestantes em comício pelas diretas no Vale do Anhangabaú, zona central de São Paulo - Alfredo Rizzutti

Um desses trabalhos é um vídeo no qual o cineasta Eduardo Escorel registrou o cortejo que se seguiu à morte do secundarista Edson Luís. O jovem foi morto pela polícia militar durante um protesto no centro do Rio de Janeiro, em 1968.

O episódio se tornou um dos símbolos da violência da ditadura e estopim para a Passeata dos Cem Mil, considerada a mais importante manifestação popular contra o regime.

A exposição faz o retrato de um país conflagrado e acossado pela arbitrariedade. "O Brasil nunca enfrentou os processos de violência, seja o extermínio da população indígena com a chegada dos europeus, seja os três séculos de escravidão", diz Rogerio Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog.

A entidade leva o nome do jornalista assassinado em 1975 durante uma sessão de tortura nas dependências do DOI-Codi de São Paulo. Rogério diz que, além de celebrar a memória de Herzog, a exposição mostra que o Brasil falhou em responsabilizar quem comete violência em nome do Estado.

"Sempre encontraram uma forma de contemporizar, de deixar pra lá dizendo aquela velha orientação: ‘Vamos olhar pra frente e esquecer o passado’", diz ele, acrescentando que esse processo gerou uma democracia suscetível a ataques. "Precisamos revisitar o passado e ter uma cultura de responsabilização política e judicial de todos aqueles que cometem crimes."

Uma das consequências da dificuldade do Brasil em encarar seus fantasmas ganhou corpo no dia 8 de janeiro no ano passado. À época, um grupo de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiu e depredou as sedes dos três Poderes para questionar o resultado das eleições.

A tentativa de ruptura democrática é retratada por meio da exibição de "Domingo no Golpe", documentário dirigido pela pesquisadora Giselle Beiguelman e pelo cineasta Lucas Bambozzi. O material mostra a invasão a partir das câmeras de segurança dos prédios de Brasília.

Além dessa produção, o público poderá ver os filmes "Memória Sufocada", de Gabriel Di Giacomo, "Espero Tua (Re)volta", de Eliza Capai, e "Torre das Donzelas", de Susanna Lira.

"A memória é um lugar importante para que a gente não repita o passado no presente e no futuro", diz Rogério.

Como um lembrete disso, a expografia traçou diálogos entre fatos passados e contemporâneos. Exemplo disso são fotografias que retratam o movimento estudantil durante a década de 1960 e em 2015. Naquele ano, estudantes ocuparam escolas de São Paulo para protestar contra a reorganização do ensino proposta pelo então governador Geraldo Alckmin.

"Fizemos um esforço de criar paralelos entre o que acontecia há 60 anos e como isso gerou consequências em questões socais de hoje em dia", diz Lorrane Rodrigues, uma das curadoras da exposição.

Ela acrescenta que o engajamento social é praticamente uma necessidade para grupos marginalizados. "Há muitas pessoas que estão em luta muito menos porque querem e muito mais porque precisam. Elas teimam em viver."

Durante a ditadura, a resistência não era feita apenas nas ruas, mas também nas redações de jornais.

Por isso, a exposição evidencia como a imprensa desafiou a censura prévia para denunciar os arbítrios do regime.

Em um das seções da mostra, há desenhos do cartunista Ziraldo feitos para a revista Pif-Paf, fundada por Millôr Fernandes. Em 1964, um dos colaboradores do veículo foi preso pelos militares em razão de um cartum publicado na primeira edição do projeto.

Além de sambas-enredos censurados durante a ditadura, a mostra traz também uma fantasia usada no desfile deste ano da Vai Vai. O traje retrata PMs com chifres e asas de demônio para criticar a violência policial contra a população negra.

Após o desfile, o governador Tarcísio de Freitas criticou a alegoria, dizendo que ela era de péssimo gosto. "Se eu fosse jurado, daria nota zero no quesito fantasia."

Um dos curadores da mostra, Luis Ludmer diz que manifestações artísticas como o samba são pilares importantes da democracia. "Não à toa, regimes autoritários inviabilizam produção cultural independente, pensamento crítico e liberdade de expressão."

O cineasta diz ainda que a exposição tenta inspirar as pessoas a protegerem e valorizarem as instituições democráticas. "Democracia só existe se todos estiverem ativos nela e se for legitimada pela sociedade."

Sobre Nós – 60 anos de resistência democrática no Brasil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.