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Rússia tem comédia na TV parecida com 'The Americans', mas que se passa na presidência de Donald Trump

Peter Jacobson, que atuou em 'House of Cards', fez participação especial no programa

Peter Jacobson na série russa 'Adaptação'
Peter Jacobson na série russa 'Adaptação' - Gennady Grachev/Russian TV Channel TNT
Amie Ferris Rotman
Moscou | Washington Post

A tarde é cálida, e o ator americano Peter Jacobson está no estúdio de um programa russo de TV, sentado a uma mesa sobre a qual se vê caviar vermelho, arenque, picles e copos curtos de vodca. O diretor de TV russo Alexander Nazarov entra no cenário para orientar Jacobson quanto ao seu personagem, um agente da CIA. "Os russos te enganaram", diz Nazarov a Jacobson. "Você deveria xingar mais, gritar mais".

Isso é explicado baixinho ao ator por seu tradutor russo. Jacobson diz "entendo", para os colegas de elenco e a equipe de filmagem, no russo hesitante que ele está apenas começando a aprender, o que causa risadas. Em seguida Jacobson veste de novo a pele do personagem e dispara uma sequência acelerada de palavrões em inglês, para diversão de seus colegas russos.

Jacobson, conhecido das audiências dos Estados Unidos por seu trabalho nas séries "House" e "Colony" (do canal USA Network), passou 10 dias em Moscou recentemente para filmar uma participação em "Adaptação", uma série russa de grande sucesso que foi comparada a "The Americans".

Esta última, um drama do canal FX sobre uma família de espiões russos que vive na Virgínia nos anos 1980, veiculou seu episódio final em maio, depois de seis temporadas muito elogiadas pela crítica.

O encerramento surge em um momento no qual os Estados Unidos parecem cada vez mais obcecados com a Rússia, diante de acusações de interferência nas eleições de 2016 e de uma investigação sobre o que o comando da campanha de Trump sabia a respeito.

"Adaptação" é a contraparte russa dessa história, uma série de grande sucesso sobre um espião americano na Rússia contemporânea. Mas seu tom é muito mais leve, ainda que igualmente antenado, em seu tratamento do relacionamento turbulento entre os dois países.

"Achávamos que [a trama] podia ser uma maneira de promover a paz entre nossos países", disse Stanislav Tliashev, um dos quatro roteiristas da série, em russo. "Humor também é necessário... Podemos rir de nossos problemas e depois deixá-los para trás".

A primeira temporada foi lançada em fevereiro de 2017, e a ação acontece no início da presidência de Trump. A CIA envia um espião americano chamado Ashton Ivy (interpretado pelo galã russo Leonid Bichevin) para se infiltrar na Gazprom, a gigante estatal russa do gás, onde ele deve ganhar acesso a uma tecnologia secreta usada para a extração de gás.

Lá, ele se apaixona por uma beldade siberiana e, sem saber, faz amizade com um agente do FSB, o serviço de segurança russo; aos trancos e barrancos, Ashton consegue chegar aos escalões superiores da Gazprom. Mas na verdade é ele que está sendo manipulado: os russos se antecipam às suas ações o tempo todo.

Tliashev, em uma pausa para fumar durante a rodagem, não revela nada comprometedor sobre a segunda temporada, mas define o protagonista como "um espião americano que salva a Rússia".

Tliashev diz que a inspiração para a série vem de produções como "Broadchurch", um policial britânico, e "Trust", um drama americano. Ele afirma que "The Americans" o influenciou, mas apenas ligeiramente; Tliashev disse ter assistido às duas primeiras temporadas do seriado.

Jacobson, que também trabalhou em "The Americans", em um papel menor como agente do Serviço Federal de Investigações (FBI), diz que as duas séries são, tecnicamente, versões uma da outra, mas que "Adaptação" deveria ser definida "em última análise como comédia".

Para a segunda temporada, o papel de Jacobson como controlador de Ashton —o homem que o envia em suas missões— foi expandido. No estúdio, fica claro que Jacobson é o queridinho da vez, uma rara presença americana na vida de seus colegas de trabalho russos. Jacobson depende muito deles. Os roteiros e interações no estúdio precisam passar pelo tradutor, mesmo que o diálogo dele seja em inglês (mais tarde dublado para o russo). "De certa forma, isso reduz a pressão", ele diz. "Gosto da distância cultural. Gosto da barreira do idioma. Eles cuidam direitinho de mim".

"Adaptação" foi criado pelo canal TNT, cuja programação se volta aos jovens e é controlado pela divisão de mídia da Gazprom. Em determinado momento do ano passado, a série foi o programa de maior audiência da Rússia na faixa das 20h às 21h em dias de semana, de acordo com a Mediascope, uma agência estatal de pesquisa de audiência. Um em cada oito russos com idade entre os 18 e 30 anos assistia à série, informou um porta-voz do canal.

A série mistura humor verbal e humor físico. Ashton, um texano astuto  mas ocasionalmente ingênuo, perde dias de sua vida bebendo vodca em um trem russo que percorre a Sibéria. Ele mal consegue suportar a temperatura gélida, não sabe como ligar um carro depois que o motor congelou, e sua língua fica grudada em um cano.

O programa também satiriza os líderes de ambos os países —ainda que Trump seja alvo de mais zombarias do que o presidente Vladimir Putin, como, por exemplo, numa piada na segunda temporada sobre o aperto de mão notoriamente desajeitado do líder americano.

Uma série sobre espionagem, especialmente uma na qual a Rússia triunfa diante dos Estados Unidos, como aconteceu na primeira temporada, não poderia ser mais auspiciosa.

O Ocidente e a Rússia vivem seu período de maior confronto desde o final da Guerra Fria. Se a interferência na eleição não bastasse, há desavenças quanto aos conflitos na Síria e na Ucrânia, e quanto ao programa nuclear do Irã.

Uma segunda série de TV russa sobre espiões, "Infiltrados", estreou no ano passado em um canal estatal. É uma história muito mais sombria sobre o confronto entre Moscou e Washington, e envolve um personagem que muita gente entende como baseado no líder oposicionista russo Alexei Navalny. Na série, o personagem morre em um atentado com explosivos.

Nas últimas semanas, o relacionamento entre Moscou e Washington se deteriorou ainda mais, resultando em novas sanções aplicadas pelos Estados Unidos e a União Europeia ao círculo de aliados mais próximos de Putin.

Elas vieram em resposta ao envenenamento de um ex-agente duplo russo e sua filha na Inglaterra, com o uso de um composto tóxico desenvolvido na União Soviética. (Os dois sobreviveram.) O Ocidente atribuiu à Rússia a culpa por um ataque que Moscou nega terminantemente ter ordenado.

Jacobson, 53, estava ciente de que "os americanos estão absolutamente convencidos de que a Rússia se envolveu em nossa eleição de maneira nefária". Mas assim que o ator, que vive em Nova York, chegou a Moscou para a filmagem da segunda temporada, ele começou a ver as coisas de uma perspectiva diferente. "Sempre me surpreende que os [russos] não comprem a narrativa da mídia americana, e isso me faz questioná-la, o que só pode ser saudável".

Jacobson está falando à beira de um lago no subúrbio de Moscou, em uma pausa para mudança de cenários em seu último dia de filmagem. Ele usa uma camisa azul com listras brancas, uma gravata azul marinho e um cardigã bege com apliques de couro nos cotovelos —a ideia do figurinista russo sobre como um agente dos serviços de inteligência americanos deve se vestir. O rosto dele está recoberto por uma camada de maquiagem que se derrete lentamente ao sol do fim de tarde.

"Vir aqui e estar no lugar que, uma vez mais, está sendo visto de modo tão negativo por nós, do outro lado do oceano, é uma coisa ótima, na verdade", ele diz.

Jacobson acredita que americanos e russos queiram a mesma coisa: um bom salário e a companhia de suas famílias. "Amo estar aqui e perceber que todo mundo está batalhando por uma vida melhor".

Nazarov, 52, um sujeito alto, com cabelos grisalhos revoltos, dirigiu diversas séries russas de TV e estudou para ser ator, nos dias finais da extinta União Soviética. Ele concorda em que seu país e os Estados Unidos têm mais em comum do que a maioria das pessoas deseja admitir. "Há trapaceiros e políticos corruptos dos dois lados, mas a maioria das pessoas é normal". Em "Adaptação", os países rivais são mostrados como tendo interesses em comum, mas também como altamente suspeito um para o outro.

Ele acrescenta: "Eu disse a Peter [Jacobson] que se nosso programa ajudar a melhorar as relações entre a Rússia e os Estados Unidos, teremos realizado alguma coisa".

Essa possibilidade pode ser um bom presságio quanto ao sucesso continuado da série. Além disso, como diz Jacobson, "se você coloca gente inteligente em situações interessantes e acrescenta algum tempero político, as pessoas vão querer assistir".

Tradução de PAULO MIGLIACCI
 

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