'Bergman tinha medo de não conseguir fazer seu trabalho', afirma produtora

No centenário do diretor, celebrado neste sábado (14), Katinka Faragó relembra os 30 anos em que trabalhou com ele

mulher sentada no chão ao lado de homem sentado em cadeira
Katinka Faragó e Ingmar Bergman no set de 'A Hora do Amor', em 1970 - Bo-Erik Gyberg/Stiftelsen Ingmar Bergman/Divulgação
Helen Beltrame-Linné Jonas Beltrame-Linné
São Paulo

Na primeira página da versão em livro de "Fanny e Alexander" (1984), Ingmar Bergman escreveu: "Para Katinka, com amor (Sem você esse filme nunca teria se realizado. É simples assim!)". Em seguida, um pequeno coração.

Bergman —cujo centenário se comemora neste sábado (14), com eventos como a exibição de novo documentário em diversas salas do Brasil (leia abaixo)—  é um nome familiar para o leitor, mas poucos conhecem a mulher a quem o cineasta dedicou um de seus filmes mais famosos.

Katinka Faragó, nascida em Viena, em 1936, chegou à Suécia aos quatro anos com a família judaica que havia fugido da Hungria. Por influência do pai, roteirista, participou de sua primeira filmagem aos 13. Nunca mais deixou o set.

Aos 19, fez seu primeiro filme com o sueco, "Sorrisos de uma Noite de Verão" (1955). Viriam outros 18, muitos como produtora. A parceria de 30 anos lhe rendeu a alcunha de "mão direita de Bergman".

Mas ela foi mais que isso. Em 68 anos de carreira, foram 125 filmes com 55 diretores, incluindo nomes como Andrei Tarkóvski. Em entrevista à Folha, Katinka conta sobre Bergman nos bastidores e diz que ele teria muito a ensinar no contexto do #MeToo.

 

Por que as coisas funcionaram tão bem entre a sra. e Bergman?

Levou um tempo para isso acontecer. No início eu morria de medo, pois Bergman brigava com as pessoas na frente de toda a equipe. Se alguma coisa o estava irritando, ele pegava quem estava mais próximo —e era sempre eu, por causa da minha função.

Com o tempo percebi que era pedagógico: ele tinha acessos de raiva precisos e bem controlados para que todos ficassem mais afiados. E ele não queria se indispor com os atores, por exemplo, até porque leva uma hora para maquiar de novo uma atriz que chorou, não é nada prático.

Depois que entendi isso, deixei de me importar, pois sabia que não era pessoal.

Então é mentira que havia um clima bom nas filmagens?

As filmagens com Bergman eram mais divertidas. Éramos um ótimo time, ele fazia brincadeiras, contava histórias. Depois de uma briga ele sempre pedia desculpas —de preferência atrás de um cenário ou um arbusto, para ninguém ver.

A verdade é que Bergman era genioso e também não se sentia bem. Estava sempre com dor: tinha angústia de noite e dor de barriga de dia. Com ele tudo era intenso.

Mas as pessoas confundem as coisas. Hoje existe esse movimento #MeToo contra o assédio e querem sugerir que Bergman era um predador. Isso é absurdo, ele estava totalmente no time das mulheres.

Na filmagem de "Sonata de Outono" (1978), vi Ingrid Bergman ligar para sua filha e dizer: "Você tem que ver isso, só tem mulher no set!". Ela nunca tinha visto aquilo em Hollywood, onde reinava um machismo forte. Com Bergman éramos muitas mulheres na equipe, na frente e atrás da tela.

pessoas na natureza
Gunnel Lindblom (esq), Ingmar Bergman e Katinka Faragó durante as filmagens de 'Morangos Silvestres', em 1957 - Arquivo do Instituto Sueco

Na vida privada, fora do set, ele também era assim?

Não se socializava com Bergman. Ele não sabia nada da minha vida. Ficou sabendo quando nasceram minhas filhas, quando me casei, me separei, mas nada de detalhes. A vida privada não interessava.

No trabalho, ele queria que eu existisse só para ele. Às vezes, de manhã, ele não se sentia bem. Ele era muito humilde, ficava nervoso, com medo de não conseguir fazer seu trabalho. Então sentávamos no escuro, sem falar, e ficávamos de mãos dadas. Mas nosso envolvimento era profissional, nunca passou disso.

Uma vez, uma das minhas filhas estava doente. Eu a levei comigo para o escritório e a deixei deitada num sofá. Ingmar entrou na sala e apontou: "O que é isso aqui?". Eu expliquei, falei para não se preocupar e sentamos para trabalhar. Em alguns minutos ele se levantou e disse: "Isso não vai funcionar, você não está pensando em mim, só nela". Achei que foi longe demais. E foi a única vez que ele viu uma de minhas filhas ainda pequena.

Você começou como continuísta, trabalhando próxima do roteiro, algo que Bergman valorizava. Depois passou a produtora. Como foram essas experiências?

Meu trabalho era fácil, porque Bergman fazia o dever de casa: estudava o texto e se preparava extremamente bem, sabia exatamente o que seria feito a cada dia. Se havia algum problema de produção, ele reescrevia cenas à noite e chegava no dia seguinte com a solução.

A transição para produtora foi simples, porque eu havia passado anos ao lado dele e conhecia o trabalho, sabia como funciona uma filmagem.

Ele fez uma dedicatória histórica para você em "Fanny e Alexander". Por quê?

É a declaração mais bonita que alguém já me fez. Quando começamos o projeto, ele estava exilado e queria filmar em Munique, mas eu briguei com ele e me esforcei para que o filme fosse feito na Suécia. Eu o convenci de que era possível filmar em Uppsala, onde ele cresceu e para onde "Fanny e Alexander" foi escrito. Foi ali que ele voltou para a Suécia também, então acho que eu tive realmente um papel importante.

A sra. trabalhou com outros diretores, como Andrei Tarkóvski; Bergman era diferente?

Ele era um gênio. Tarkóvski era muito talentoso, mas houve problemas de comunicação na filmagem. Para Bergman, o essencial eram os atores, meu trabalho era deixá-los felizes. Já para Tarkóvski, era a imagem. Quando o conheci, ele não me dirigiu a palavra, nem sequer me olhou até o momento em que arrumou a cortina e a luz da janela me iluminou. Só aí passei a existir.


Katinka Faragó, 81

Produtora de cinema nascida em Viena (Áustria), trabalhou em 125 filmes em 68 anos de carreira, iniciados aos 13, como estagiária no set de 'Loffe blir Polis' (Loffe torna-se policial, 1950), de Elof Ahrle

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