Em 1967, uma desconhecida cantora e compositora chamada Joyce, 19, foi vaiada no Festival Internacional da Canção. Sua música "Me Disseram" chocou a plateia porque, na letra, a mulher declara seu amor a um homem cafajeste, "louco e vagabundo" —o "meu homem".
Em 2018, nova versão de "Me Disseram" apareceu numa plataforma digital de músicas com o selo "explícito". Ou seja, o conteúdo poderia chocar ouvidos mais sensíveis.
O selo foi retirado. Antes, porém, Joyce documentou o fato com a câmera do celular.
A situação indica que nem tudo se renovou nas últimas cinco décadas. Joyce Moreno, como ela se assina hoje, tem convicção de que "Me Disseram" e as outras dez canções de seu primeiro disco, lançado em 1968, continuam vivas.
Para comemorar seus 50 anos de carreira e 70 de vida, decidiu regravar em "50" o repertório de "Joyce". E não foi para surfar em antigos sucessos, pois o disco não produziu nenhum à época.
"É a minha parada de fracassos", brinca. "O repertório não é o que eu viria a ser como compositora, mas foi um bom começo. Quis regravar com minhas ideias de hoje."
Quanto à sonoridade, saíram as cordas dos arranjos de 1968 e entrou a levada de samba-jazz que predomina no trabalho da artista. A formação básica conta com ela no violão, seu marido, Tutty Moreno, na bateria, Helio Alves no piano e Rodolfo Stroeter no contrabaixo.
Em relação às letras, a explícita "Me Disseram" tem a companhia de "Não Muda Não", na qual a narradora pede para que seu "homem boêmio" continue sendo o que é, longe da "vida burguesa".
"Eu sozinha na minha cozinha/ Esperando a vizinha para conversar/ E você tá desaparecido/ Com algum amigo em qualquer bar/ Mas, por favor, eu não quero te mudar/ Não muda não."
"A gente era muito moderna", diverte-se Joyce, que tem "Feminina" e "Essa Mulher" entre seus sucessos. "Há moças hoje que acham que estão inventando a pólvora, mas ela já vinha sendo inventada há muito tempo."
As canções explodiram na família daquela garota de Ipanema e Copacabana, que largou o jornalismo para se dedicar à música. Ninguém esperava algo como "Me Disseram".
"Meus irmãos mais velhos ficaram congelados. Minha mãe ficou passada, mas foi muito inteligente: quando amigas telefonavam escandalizadas, dizia que não era a filha a dizer aquilo, mas a personagem da música. O eu lírico", conta.
A gravadora Philips avaliou que era demais fazer um disco só com composições de uma moça de 20 anos. Pediu que outros nomes (de homens) constassem do repertório. E Joyce foi atrás dos amigos.
Paulinho da Viola lhe cedeu "Ansiedade", samba que ele nunca viria a gravar. Caetano Veloso entrou com "Ave Maria", faixa do seu primeiro LP tropicalista, de 1967. Joyce a registrou agora em tom afro, num recado contra a intolerância religiosa.
Toninho Horta tinha 20 anos, morava em Belo Horizonte e estava distante de ser um violonista e guitarrista reconhecido internacionalmente. Na nova versão da sua "Litoral" (com letra de Ronaldo Bastos), ele acompanha Joyce.
Jards Macalé, que tocou violão em 1968, agora é só o parceiro de Joyce em "Choro Chorado" —composição que ganhou elogios do severo Jacob do Bandolim. Ela ainda teve o privilégio de lançar "Bloco do Eu Sozinho" (Marcos Valle e Ruy Guerra). E de praticamente lançar "Anoiteceu" (Francis Hime e Vinicius de Moraes), então desconhecida.
Joyce resolveu incluir duas novas faixas. "Com o Tempo" é uma letra sobre a passagem dos anos que Zélia Duncan escreveu quando fez 50 —e que Joyce musicou aos 70. "A Velha Maluca" é autobiográfica.
"Aí o eu lírico foi para o brejo. É uma declaração de princípios sobre mais um paradigma que minha geração está quebrando: o do envelhecimento", diz Joyce, que se mantém em atividade, com temporadas anuais no Japão, na Europa e nos EUA —no dia 13/7, estará na programação do Jazz at Lincoln Center, em Nova York.
50
Joyce Moreno. Biscoito Fino. R$ 32.
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