Joyce Moreno resgata sua 'parada de fracassos'

Aos 50 anos de carreira, ela regrava seu primeiro disco, cujo repertório foi alvo de reação conservadora nos anos 1960

Luiz Fernando Vianna
Rio de Janeiro

Em 1967, uma desconhecida cantora e compositora chamada Joyce, 19, foi vaiada no Festival Internacional da Canção. Sua música "Me Disseram" chocou a plateia porque, na letra, a mulher declara seu amor a um homem cafajeste, "louco e vagabundo" —o "meu homem".

Em 2018, nova versão de "Me Disseram" apareceu numa plataforma digital de músicas com o selo "explícito". Ou seja, o conteúdo poderia chocar ouvidos mais sensíveis.

O selo foi retirado. Antes, porém, Joyce documentou o fato com a câmera do celular.

A situação indica que nem tudo se renovou nas últimas cinco décadas. Joyce Moreno, como ela se assina hoje, tem convicção de que "Me Disseram" e as outras dez canções de seu primeiro disco, lançado em 1968, continuam vivas.

Para comemorar seus 50 anos de carreira e 70 de vida, decidiu regravar em "50" o repertório de "Joyce". E não foi para surfar em antigos sucessos, pois o disco não produziu nenhum à época.

"É a minha parada de fracassos", brinca. "O repertório não é o que eu viria a ser como compositora, mas foi um bom começo. Quis regravar com minhas ideias de hoje."

Quanto à sonoridade, saíram as cordas dos arranjos de 1968 e entrou a levada de samba-jazz que predomina no trabalho da artista. A formação básica conta com ela no violão, seu marido, Tutty Moreno, na bateria, Helio Alves no piano e Rodolfo Stroeter no contrabaixo.

Em relação às letras, a explícita "Me Disseram" tem a companhia de "Não Muda Não", na qual a narradora pede para que seu "homem boêmio" continue sendo o que é, longe da "vida burguesa".

"Eu sozinha na minha cozinha/ Esperando a vizinha para conversar/ E você tá desaparecido/ Com algum amigo em qualquer bar/ Mas, por favor, eu não quero te mudar/ Não muda não."

"A gente era muito moderna", diverte-se Joyce, que tem "Feminina" e "Essa Mulher" entre seus sucessos. "Há moças hoje que acham que estão inventando a pólvora, mas ela já vinha sendo inventada há muito tempo."

As canções explodiram na família daquela garota de Ipanema e Copacabana, que largou o jornalismo para se dedicar à música. Ninguém esperava algo como "Me Disseram".

"Meus irmãos mais velhos ficaram congelados. Minha mãe ficou passada, mas foi muito inteligente: quando amigas telefonavam escandalizadas, dizia que não era a filha a dizer aquilo, mas a personagem da música. O eu lírico", conta.

A gravadora Philips avaliou que era demais fazer um disco só com composições de uma moça de 20 anos. Pediu que outros nomes (de homens) constassem do repertório. E Joyce foi atrás dos amigos.

Paulinho da Viola lhe cedeu "Ansiedade", samba que ele nunca viria a gravar. Caetano Veloso entrou com "Ave Maria", faixa do seu primeiro LP tropicalista, de 1967. Joyce a registrou agora em tom afro, num recado contra a intolerância religiosa.

Toninho Horta tinha 20 anos, morava em Belo Horizonte e estava distante de ser um violonista e guitarrista reconhecido internacionalmente. Na nova versão da sua "Litoral" (com letra de Ronaldo Bastos), ele acompanha Joyce.

Jards Macalé, que tocou violão em 1968, agora é só o parceiro de Joyce em "Choro Chorado" —composição que ganhou elogios do severo Jacob do Bandolim. Ela ainda teve o privilégio de lançar "Bloco do Eu Sozinho" (Marcos Valle e Ruy Guerra). E de praticamente lançar "Anoiteceu" (Francis Hime e Vinicius de Moraes), então desconhecida.

Joyce resolveu incluir duas novas faixas. "Com o Tempo" é uma letra sobre a passagem dos anos que Zélia Duncan escreveu quando fez 50 —e que Joyce musicou aos 70. "A Velha Maluca" é autobiográfica.

"Aí o eu lírico foi para o brejo. É uma declaração de princípios sobre mais um paradigma que minha geração está quebrando: o do envelhecimento", diz Joyce, que se mantém em atividade, com temporadas anuais no Japão, na Europa e nos EUA —no dia 13/7, estará na programação do Jazz at Lincoln Center, em Nova York.


50

Joyce Moreno. Biscoito Fino. R$ 32.

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