Descrição de chapéu

Lily Allen expurga culpas e vícios e se reafirma como força do pop em quarto disco

Letras de 'No Shame' levam imprensa inglesa a se perguntar: deveríamos nos preocupar com Lily?

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São Paulo

No Shame

  • Preço R$ 32,90 (CD)
  • Autor Lily Allen
  • Gravadora Warner Music

Os últimos dez anos foram duros para Lily Allen.

A cantora sofreu um aborto, teve depressão, largou a música, mudou de nome, casou-se, retomou carreira e nome artístico, teve uma filha, sofreu outro aborto, quase morreu de septicemia, teve outra filha, fugiu de stalkers, separou-se.

E encheu a cara.

Isso tudo transparece em “No Shame”, que eleva a comunhão de meiguice e pancada que consagrou a britânica em hits como “Fuck You”.

No novo álbum, porém, não há metáforas: tudo é narrado de forma direta, quase jornalística, em nudez alarmante.

​Allen, 33, foi garota-problema na juventude, mas nunca pareceu um trem descarrilhado, como a colega de geração Amy Winehouse (1983-2011).

Daí que o espanto de fãs e jornalistas não se deva à sonoridade. Nela, o trabalho aprofunda o que a cantora vem fazendo desde o segundo disco, “It’s Not Me, It’s You” (2009). 

Embora grooves e melodias soem mais atraentes que no antecessor, “Sheezus” (2014), o álbum recém-lançado pouco flexiona as fronteiras do pop eletrônico de quatro acordes.

Mesmo assim, ela dá mostras de que o recheio dessa torta pode ser mais variado. Revela-o nas pitadas de reggae e hip-hop, como nas participações do rapper Burna Boy e da cantora Lady Chann, e nas faixas em que os arranjos ladeiam o rock orquestrado.

Mas é nas palavras que “No Shame” (sem culpa ou sem vergonha, em inglês) carrega suas maiores virtudes.

Allen expia o vício em álcool e drogas, a promiscuidade e o desamparo que a “vida loka” reservou a si e às pessoas à sua volta, em particular as filhas.

Logo na abertura, a britânica se define como “uma péssima mãe, uma péssima esposa”.

Em “Pushing Up Daisies”, cuja tradução seria algo como “tirar pétalas de margaridas”, canta gíria de duplo sentido, que serve para “morrer” tanto quanto para “usar heroína”.

As 14 canções do disco percorrem um trajeto; partem de hits de pistas —“Trigger Bang” já ensaia alçar inferninhos— e, em dado momento, adentram um interlúdio intimista.

“Family Man” conduz o ouvinte a outra paisagem, a das baladas pianísticas adornadas em falsetes, lembrando aqui e ali a americana Fiona Apple.

Já “Apples” leva a cantora a uma quase bossa robótica, em contraponto à lírica amarga.

Sua conclusão de que “Uma maçã nunca cai longe da árvore” aponta para as sessões de terapia que, oxalá, vai frequentar: o pai, o músico e comediante Keith Allen, foi alcoólatra e afastou-se da família quando ela tinha três anos.

“Agora estou onde não queria/ Igual mamãe e papai”, flagela-se.

Rareiam as concessões a figuras de linguagem. Granadas emocionais, como “Já que você entende tanto de mim, porque não enfia seu dinheiro onde está a sua boca”, são cantadas de forma suave, em um tom satiricamente idílico.

Essas e outras palavras fortes, contudo, são dispostas em melodias esmeradas e até assoviáveis. “Sinto nas minhas entranhas/ Vou te deixar me comer/ Sei que estou sendo usada/ Não sei porque faço isso comigo”, cantarola, lânguida, em “Everything to Feel Something”.

Tal oposição entre estetismo e sarjeta reforça a beleza das confissões e do pedido de ajuda, e levou a imprensa inglesa a se perguntar: “Deveríamos nos preocupar com Lily?”.

Espera-se que não. Afinal, chapada ou não, a britânica tem muitas qualidades: o timbre aveludado e tocante de sua voz, seu pendor para belas composições e sua absoluta falta de autocomplacência.

Quase uma indelicadeza em uma era de superficialidade e narrativas controladas, é a disposição em se enfrentar e fazer disso arte que torna “No Shame” um trabalho do qual Lily Allen deve, sim, se orgulhar.

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