Descrição de chapéu Flip

O axé que não cabe mais na pista de dança é um reflexo do nosso tempo

No tempo de revisão da produção cultural à luz de questões feministas e raciais, a pista de dança não é mais a mesma

Fernanda Mena
Paraty

Numa das festas em que autores, editores e público se misturam durante a Flip, o DJ escolhe uma música para, em seguida, voltar atrás. “Errei, gente, errei!”, desculpou-se, antes de trocar de faixa, não sem alguns segundos de silêncio.

A mudança inesperada é um reflexo do nosso tempo. Ao ouvir as primeiras notas do axé “Fricote”, do baiano Luiz Caldas, o DJ olhou bem para a pista de dança e reconheceu os cabelos trançados e os cabelos armados de escritores negros convidados para o evento. 

O hit dos anos 1980 popularizou os versos “Nega do cabelo duro, que não gosta de pentear”, uma letra considerada ofensiva para muitos negros. 

Num tempo de lutas identitárias e de revisão da produção cultural à luz das questões feministas e raciais brasileiras, a pista de dança não é mais a mesma.

“O racismo era tão habitual e corriqueiro naquele tempo que esse tipo de letra, que debochava das características dos negros, passava. Hoje, isso é algo que não cabe mais”, avalia o escritor Paulo Lins, autor do best-seller “Cidade de Deus” e um dos primeiros autores negros brasileiros a ocupar lugar de destaque na produção contemporânea. 

Lins participou da Flip num tempo em que os negros eram raros na programação. Em sua primeira edição, em 2003, o festival não tinha nenhum convidado negro. Nas duas últimas, a proporção foi de 20% de escritoras e escritores negros. A mudança no perfil dos autores também parece ter atraído um público mais diverso, agora também representado nos espaços de destaque.

O escritor Paulo Lins em 2013
O escritor Paulo Lins em 2013 - Zanone Fraissat/Folhapress

Foi o caso da pedagoga e bibliotecária mineira Andreza Felix, 40, que diz acompanhar a Flip à distância ao longo de seus 15 anos de história. “Foi muito impactante a representatividade de negros nesta edição”, observa. “Os círculos literários podem ser extremamente excludentes”, avalia.

Felix lembra como, ainda menina, a letra da música de Caldas era cantada para ela, de forma pejorativa, por colegas brancos da escola. “A forma como meu cabelo cresce, enredado, não significa que eu não goste de penteá-lo.” 

Lins diz que “já dançou muito essa música em outros carnavais”. “Não vou sentir falta se não dançá-la nunca mais”, brinca, lembrando da canção “Olhos Coloridos”, que falava do mesmo cabelo na mesma época, mas de outro jeito. “Meu cabelo enrolado/ Todos querem imitar/Eles estão baratinado/ Também querem enrolar…”, diz a letra, em que Sandra de Sá emendava o refrão “A verdade é que você/ (Todo brasileiro tem!)/Tem sangue crioulo/Sarará criolo”.

Para Lins, no entanto, por mais que essas questões sobre a produção cultural sejam instigantes, elas não podem tirar o foco do que, diz ele, realmente importa. “O pior no racismo é a matança e o encarceramento em massa dos negros no Brasil. Colocar uma música dessas para tocar nunca pode ser comparado a isso.”

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