Descrição de chapéu
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Vocabulário de cartas é chulo, assim como as descrições do coito

Em 'A Paixão de Mademoiselle S.', a descrição repetitiva do ato sexual enche o leitor de tédio

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Jean-Yves Berthault, organizador do livro A Paixão de Mademoiselle S., lançado pela Companhia das Letras
Jean-Yves Berthault, organizador do livro 'A Paixão de Mademoiselle S.' - Divulgação
VILMA ARÊAS

A Paixão de Mademoiselle S.- Cartas de Amor (1928-1930)

  • Preço R$ 49,90 (208 págs)
  • Autoria Jean-Yves Berthault (org.)
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Rosa Freire d’ Aguiar

De saída a leitura deste livro expõe duplicidades. São cartas de amor, ou melhor, são delírios da paixão. O ato sexual é nomeado em suas variações, que afinal não podem ser muitas, qualquer um sabe.

Mas se o tema é apresentado direto e nu, vem ao mesmo tempo vestido: explicações, desvios, informações, manobras construtivas de uma certa literatura codificada, de suspense, detetivesca etc.

Para começar, quem escreve? Não encontramos seu nome na capa e sim o do apresentador Jean-Yves Berthault, diplomata francês aposentado.

No prefácio ele nos diz que encontrou papéis manuscritos escondidos num porão, dentro de um caixote. O que seriam? Mapas do tesouro? Uma partitura inédita de Mozart? Nada disso. São cartas de amor. Afirma que levou um ano para colocá-las em ordem, embora a data de 1929 só apareça uma vez.

O vocabulário é obsceno, chulo, assim como as descrições do coito. Como uma mulher teria aprendido o "vocabulário do Macho"? Ele conclui que certamente com o amante, pois mesmo a literatura avançada da época (Genet, Gide etc.) não usou tal linguagem "imunda"; ou talvez com os filmes pornográficos que surgiam, ou com a "Revue Nègre" de Joséphine Baker, naqueles "Anos Loucos" pós-Primeira Guerra Mundial.

O apresentador mostra seu achado a um amigo que desconfia ser ele mesmo o autor (hum...). Mas especialistas atestam a autenticidade necessária. A partir daí, mãos à obra. Inventa nomes —Simone e Charles— para proteger pessoas reais —àquela altura um punhado de pó; seleciona e arruma as cartas e as publica com êxito total, pois até agora, pasme-se o leitor, o livro (2015) já foi traduzido em 11 países. Finalmente, o mapa do tesouro.

Mas o resultado final é que a descrição repetitiva da cópula enche o leitor de tédio, do déjà-vu. Na cama, Simone faz de tudo e tudo aceita para interessar o amante (calma, gente, estamos em 1929). Mas é ele que vira "minha Lotte", delirando com o membro artificial providenciado por Simone (ou será imaginação?).

No correr do texto o apresentador toma a palavra, em socorro dessa total chatice, até "minha Lotte" dá no pé. Seus comentários são interessantes, como a informação que desde 1791 a homossexualidade fora despenalizada na França, o que não excluía homofobias e retrocessos.

Só em 1982 houve nova despenalização. Outras notas merecem reparo, como as elucubrações sobre a existência de membros falsos no início do século 20. Porque esses famosos "auxiliares" masculinos talvez se irmanem aos femininos desde o século 16. Quem pode esquecer a conversinha da Alcoviteira com o Diabo num auto do genial Gil Vicente, afirmando que levava "seiscentos virgos postiços" (virgens falsas) "para os cônegos da Sé"?

Saudades das cartas de amor que Mariana Alcoforado, freira portuguesa, escreveu a um marechal francês. Foram publicadas pela primeira vez em 1669, não em Portugal, mas em Paris. Vive la France! Salve Mariana!

Vilma Arêas
Escritora, autora de ‘Um Beijo por Mês’ (ed. Luna Parque), entre outros

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