Revisões na TV da bandeira americana refletem fragilidades da democracia

Versão com a suástica e de ponta cabeça aparecem em séries americanas sobre o autoritarismo

Cena da série The Man in The High Castle, da Amazon
Cena da série The Man in The High Castle, da Amazon - Reprodução
Gustavo Fioratti
São Paulo

A bandeira dos Estados Unidos tem 13 listras brancas e vermelhas representando, em número, as colônias que lutaram contra a Inglaterra pela independência. Em um quadrado azul no canto superior esquerdo, também há 50 estrelas, uma para cada um dos estados americanos. Desde o século 18 é assim.

Só que não é isso o que a TV americana está nos contando hoje. Em uma onda de ficções distópicas, a bandeira dos Estados Unidos aparece em cena com singelas modificações, todas elas circunscritas nos debates sobre as atuais crises e fragilidades da democracia. 

Houve até uma suástica colocada no lugar das estrelas-estados da bandeira pela série “The Man in The High Castle”, da Amazon, em que se retrata uma América invadida por nazistas no pós-Guerra.

 
 

O pendão da desesperança também aparece com 48 estrelas apagadas no sétimo capítulo da primeira temporada de “The Handmaid’s Tale”, história em que mulheres férteis, entre uma maioria estéril, são escravizadas e estupradas por autoridades da fictícia República de Gilead. 

Na série, Gilead expandiu seus domínios sobre os EUA. A bandeira se torna um símbolo da resistência, mas as estrelas no fundo azul se tornaram opacas. Das brancas, sobraram duas apenas, representando o Alasca e o Havaí. 

São símbolos criados sob o mesmo clima de previsões distópicas de “1984”, o romance de George Orwell publicado em 1949 que afundou a humanidade nas terras sombrias da Oceania, o império comandado por um ditador chamado Big Brother.

São criações em resposta à era Trump? Não necessariamente, mas as associações foram inevitáveis, e às vezes provocadas pelo senso de autopromoção das produtoras de TV e vídeo sob demanda. 

No dia da posse do atual presidente dos EUA, em 20 de janeiro do ano passado, a quinta temporada de “House of Cards” foi anunciada pela Netflix com um teaser que mostrava a bandeira americana tremulando de ponta cabeça. 

No dia seguinte, a imprensa retratou uma cerimônia com ruas esvaziadas, contradizendo o anúncio da Casa Branca sobre “o maior público a testemunhar uma posse” presidencial. Com as associações entre Trump e “1984” nos jornais, o livro foi ao topo na lista de mais vendidos da Amazon. 

No último mês de abril, Margaret Atwood, autora do livro “The Handmaid’s Tale”, que deu base à série homônima, foi questionada numa entrevista à revista Variety: “Se Hillary [Clinton] tivesse sido eleita presidente, o seriado teria o mesmo significado?” 

A escritora respondeu que, como entretenimento, sim, mas que os significados políticos mudam conforme muda o olhar do público. “Você sempre vê essas coisas pelas lentes de eventos que aconteceram”, ela acrescentou. 

Também em abril, numa entrevista a este jornal, o criador da série, Bruce Miller, lembrou que a obra começou a ser criada antes de Trump vencer as eleições. Ele reforçou que “The Handmaid’s Tale” não se afasta do objetivo de entreter, mas assumiu uma necessidade constante de relembrar os riscos reais do totalitarismo. 

De suas pesquisas sobre estados autoritários, ele tirou uma conclusão: “Você não acorda um dia em uma ditadura; antes disso, há sinais de que ela está chegando”.

É bom lembrar que “The Man in the High Castle” estreou em 2015. E que a subversão da bandeira americana já foi usada contra os democratas, o que ocorreu em 2012. O jornal The New York Times publicou uma reportagem sobre republicanos que colocaram a bandeira americana de cabeça para baixo como protesto pela reeleição de Obama.

Talvez alguma náusea já estivesse no ar. Dizem que a arte tem essa capacidade de expressar o zeitgeist, ou os sinais de um tempo. Fato é que, hoje, nos EUA, não é apenas a ficção que ilumina os pontos frágeis no jogo democrático. 

No livro “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, lançado no início deste ano nos EUA —e que sairá em breve no Brasil pela Zahar—, a ascensão dos demagogos é apontada como um risco iminente. 

Em passagem por São Paulo, Levitsky sublinhou como os tiranos podem agir dentro da lei mas em confronto com os princípios democráticos.

Ele citou, por exemplo, a forma como Donald Trump deslegitimava Hillary Clinton como candidata tentando criar uma imagem distorcida de sua atuação no governo Obama. 

Sobre o Brasil, o autor criticou declarações do presidenciável Jair Bolsonaro e o empenho do PT em classificar o impeachment como golpe. 

A ação do Congresso que  derrubou Dilma Rousseff, aliás, inspirou uma recriação da bandeira nacional. Muros em cidades de todo o país vêm sendo estampados com uma versão que substitui o lema “ordem e progresso” por “com o Supremo, com tudo”.

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