Rainha do Rádio, cantora Angela Maria morre aos 89 em São Paulo

Ela estava internada havia pouco mais de um mês por causa de uma infecção e não resistiu

A cantora Angela Maria no palco do Sesc Santana, em 2016
A cantora Angela Maria no palco do Sesc Santana, em 2016 - Marcus Leoni/Folhapress
Rodrigo Faour
Rio de Janeiro

A cantora Angela Maria morreu na noite deste sábado (29), por volta das 22h, após 34 dias internada no Hospital Sancta Maggiore, na Mooca, em São Paulo. A artista, que sofreu uma parada cardíaca, era chamada de Rainha do Rádio, tinha 89 anos e acabara de completar 70 de carreira.

A intérprete já era Angela Maria mesmo antes de tornar-se Angela Maria. Quando ainda se chamava Abelim Maria da Cunha e era empregada numa fábrica de lâmpadas, seu departamento, outrora o melhor da companhia, ficou deficitário por dois meses, e a culpa foi sua. Cantarolava durante o trabalho, com a voz que já era deslumbrante aos 21 anos —em vez de produzir, a turma ficava ouvindo-a, embevecida.

Foi mandada embora, claro. Triste, mas certa de que sua missão era cantar, venceu a pressão dos pais evangélicos e deu o fora de casa. Bateu à porta do famoso Dancing Avenida, no Rio de Janeiro.
Novo balde de água fria. As dançarinas, em vez de dar expediente, paravam para ouvi-la e aplaudi-la. Quase Angela perdeu o emprego outra vez.

Em pouco tempo já estava na RCA Victor e na rádio Mayrink Veiga. O passado sofrido ficara para trás. Nascida numa família paupérrima no interior do Rio, nunca teve brinquedos. E, por conta de uma briga entre os pais, foi adotada por três famílias até reencontrar a mãe, por volta dos 13 anos.

Em 1951, vivíamos o auge dos sambas-canção machucados, e, após um disco teste, Angela estourou com o dolorido “Não Tenho Você”.

Todos queriam ouvir sua voz quente e potente. Ela rivalizava com Dalva de Oliveira, Marlene e Emilinha Borba no posto de cantora mais popular. Três anos depois, recebia das mãos dessa última a coroa de Rainha do Rádio.

O presidente Getúlio Vargas a tinha comparado a um fruto brasileiro. “Menina, você tem a voz doce e a cor do sapoti”, disse ele. O apelido pegou.

Foi a cantora mais bem paga de seu tempo. Os títulos pululavam —“melhor cantora de 53, 54, 55, 56”, “rainha dos músicos”, “rainha do disco”, “madrinha do Flamengo”. Popular e bela, foi capa de mais de 250 revistas entre os anos 50 e 60.

Enfileirou um número invejável de sucessos nos anos 50, em geral sambas-canção românticos e boleros, como “Vida de Bailarina” e “Fósforo Queimado”, entre outros.

Passou por muitos ritmos, como a toada, em “Lábios de mel”; o tango, em“Adeus, Querido”; a valsa, com “Mamãe”; e sambas de explosão, com “Rio É Amor”, ou carnavalescos, como “Fala Mangueira”. Sem falar na rumba “Babalu”, seu maior êxito, de 1958.

Embora optasse por um repertório mais popular, ganhou a admiração do público sofisticado a partir de 1953, quando cantou com Dorival Caymmi na boate Casablanca, no Rio, e fez temporadas no Vogue e no Copacabana Palace.

Naquele tempo, chegou a ser contratada de emissoras de rádio concorrentes, a Mayrink Veiga e a Nacional, além de alternar-se, na então capital, entre as TVs Tupi e Rio, e, em São Paulo, na Record. Teve estafa duas vezes.

Nos anos 1960, adotou um perfil ainda mais popular e teatral, com os cha-cha-chas (“Pepe”), as marchas (“A Lua é dos Namorados”) além de pérolas melodramáticas, como o rock-balada “A Noiva”, a guarânia “Falhaste, Coração” e os sambas-canção “Meu Ex-Amor” e “Cinderela” —todos alinhados à sua vida atribulada, com maridos e empresários exploradores, que ganhavam manchetes da imprensa sensacionalista. 

Fez sucesso também em Portugal e nas colônias de Angola e Moçambique, onde —numa das rebeliões pró-independência— soldados rivais chegaram a dar uma trégua na guerra para ouvi-la cantar.

Nos anos 1970, viriam “Gente Humilde”, de Garoto, Vinicius e Chico Buarque; a balada “Vá, mas Volte”, do iniciante Wando, entre outras canções. Gravou um LP com seu ex-motorista, Agnaldo Timóteo.

Iniciou também a parceria com Cauby Peixoto, que rendeu álbuns e shows memoráveis. Aos 50 anos, conheceu um garoto de 18, Daniel D’Angelo, com quem viveu até a morte.

Continuou sempre uma grande vendedora de discos. Foi dos poucos nomes da era do rádio a gravar até os anos 1990, quando registrou o antológico “Amigos”. De volta aos estúdios em 2009, baixou os tons agudíssimos e foi bem recebida com o CD “Eu Voltei”.

Gravou outros três, inclusive um último no ano passado, com canções de Roberto e também de Erasmo.
Inspiração para alguns dos maiores nomes de nossa música que a sucederam, como Elis Regina, Milton Nascimento, Alcione ou Fafá de Belém, Angela foi uma das matrizes do canto feminino brasileiro. Um mito da nossa canção.

Artistas lamentam a morte

Durante a madrugada, vários artistas e fãs utilizaram as redes sociais para lamentar a morte e prestar homenagens.

"O céu em festa. Nossa eterna rainha, uma das maiores vozes que nosso Brasil produziu. Setenta anos de uma carreira gloriosa. Uma inspiração na vida de todos nós, minha querida Angela Maria. Salve salve a rainha do rádio", escreveu a cantora Elza Soares. 

A cantora Alcione afirmou que Angela Maria foi uma grande referência para sua arte. "Ficam meus eternos agradecimentos por todas as coisas lindas que ouvi em sua voz.  Perdemos a maior cantora do Brasil, de todos os tempos". ​

Autor da biografia "Angela Maria: A Eterna Cantora do Brasil", o pesquisador Rodrigo Faour a definiu como uma das mais importantes e influentes cantoras do Brasil de todos os tempos. 

"Sempre no palco e gravando, de 1951 até hoje. O público foi sendo ativado por sua voz quente, potente e afinada, que tinha efeito 'Abra-te Sésamo'. A cada vez que abria a boca para cantar, mais uma porta se abria, mais fãs fazia e novas oportunidades profissionais se apresentavam", escreveu nas redes sociais. 
Thiago Marques Luiz, empresário da cantora, também fez sua homenagem. 

"Não houve (e por certo não haverá) nenhuma cantora na nossa música com história semelhante em termos de produtividade, importância e longevidade", disse. 

Além do marido, Angela Maria deixa quatro filhos. 

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