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'Um Trem em Jerusalém' apresenta Amos Gitai em sua melhor forma

Diretor explora tolerância e intolerância, convivência e apartheid, mas também a promessa de um futuro comum.

Cena de 'Um Trem em Jerusalém', do cineasta israelense Amos Gitai
Cena de 'Um Trem em Jerusalém', do cineasta israelense Amos Gitai - Divulgação
INÁCIO ARAUJO

Um Trem em Jerusalém

  • Quando Ter. (30), às 19h50.
  • Onde Itaú Frei Caneca 3.
  • Classificação 14 anos.
  • Produção Israel, França.
  • Direção Amos Gitai.

A vantagem de Amos Gitai é que ele sempre encontra uma forma original de mostrar as coisas. No seu “Um Trem em Jerusalém”, por exemplo, tudo é muito simples e ao mesmo tempo muito surpreendente.

Estamos em um bonde que roda pela cidade. Não qualquer cidade, mas a cidade santa de três grandes religiões. Um ponto de encontro?

Um pouco mais: “uma promessa”, acreditava Flaubert, que a visita aos 29 anos. E logo depois uma decepção para o autor de “Madame Bovary”.

Talvez Gitai ache a mesma coisa da cidade que, incorporada à Israel, foi estabelecida como capital nacional pelo governo Netanyahu. Um desses gestos típicos do primeiro-ministro: para os árabes, uma afronta; para a ONU, uma ameaça à paz; para os palestinos mais uma afronta.

Amos Gitai, também israelense, olha para as pessoas que frequentam a cidade: israelenses, trabalhadores árabes, turistas, religiosos, não religiosos, um casal que briga, uma mãe judia que oferece comida a todos e quase implora ao filho que lhe dê um neto. Escuta várias línguas: o hebraico, o árabe, o iídiche, o inglês, o francês.

Pode ser cômico quando uma repórter tenta entrevistar um técnico estrangeiro contratado pelo time local, mas é abalroada todo o tempo pela fala de um dirigente do clube. Pode também ser um grupo de religiosos que ora em voz alta. Ou alguém que canta.

Cada um com seus dramas, cada um com sua alegria, pode-se pensar. Mas não tão depressa. Seria a paz de um Estado teocrático, que se rege pela Bíblia? Foi ao menos o que disse Netanyahu ao proclamar a nova capital.

É complicada a vida nos países regidos por um Deus, pois, na verdade, Deus não tem o hábito de falar: os intérpretes falam por ele (veja-se a cena dos religiosos interpretando a Torá) e não é demais imaginar que se apropriem dele.

O corolário inevitável disso é uma espécie de paz muito particular. Quando um árabe entra no bonde e fica perto de uma moça israelense, ela não hesita em chamar o segurança (eles transitam o tempo todo, assediando —aceitemos a palavra— quem tem cara de árabe).

Opressivo, sem dúvida. Mas Gitai não se fixa apenas no evento, ele leva sua câmera ao rosto da moça: por que o pavor? Viria de uma simples paranoia? De racismo puro e simples? De um evento anterior a que não temos acesso?

​Eis o salto que o filme nos proporciona: estamos no cotidiano mais corrente (uma condução pública, frequentada por quem apareça), mas é como se o diretor perguntasse o que existe por trás de cada rosto, de cada idioma.

Existe tolerância e intolerância, convivência e apartheid, mas também a promessa de um futuro comum. Promessa como a de que falava Flaubert. E a espera suspensa entre a esperança de um convívio possível entre árabes e israelenses e a cotidiana decepção de um fosso que se aprofunda sempre mais.

É obra de um grande artista de volta à sua melhor forma.

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