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Moda

Moda já não importa para as tribos urbanas da noite de São Paulo

Grupos de artistas, estilistas e criativos forjam novas cenas moldadas pelo trânsito entre elas

Ilustrador nova-iorquino Jeremyville ilustra visão sobre tribos urbanas para caderno de moda

Jeremyville/Folhapress

Erika Palomino
São Paulo

Foi em meados do século passado ainda que começamos a olhar para as subculturas, os grupos unidos pelo gosto, pela estética, pela afinidade. Teddy boys e mods abriram caminho para apaches, punks, existencialistas, hippies, beatniks de todos os tempos. Eram outros tempos.

Nos anos 1980, passamos a chamar essa galera de tribos, e depois, nos 1990, pertencer é que era a boa. Bastava só escolher a sua. Hoje, quase 30 anos depois, “respirar se tornou tão difícil quanto conspirar”, parafraseando Félix Guattari.

A hora agora é a da micropolítica. E de sua resistência. Vivemos tempos líquidos, geridos pela volatilidade, pela versatilidade, pela multiplicidade de telas à nossa disposição. Fazer parte de uma tribo significava antes experimentar até mesmo sua idealização em toda a sua potência. Nos anos 2000 em diante, o importante passou a ser transitar. Transitar sem habitar, de preferência.

Ainda nos 1990, o pesquisador britânico Ted Polhemus cunhou o conceito de supermercado de estilos. Foi ali que começamos. Ele se referia à chamada Clubland, o que a meia dúzia que saia aqui no rolê chamava de “mundinho” e, depois, mais profissionalmente de “a cena” (não chamava balada, não). Era uma época em que as pessoas se vestiam para ir dançar. Não tinha esse "normcore" todo. Era a época da montação.

A essa turma que ia aos clubes noturnos montadas se dava o nome de clubbers. Parece simples, não? Naquele tempo a gente levava um tempão explicando. Quem eram os clubbers, o que faziam, como falavam, como se relacionavam, o quê e quem comiam.

Sobre como falar, neste ano (de 2018) caiu na prova do Enem uma questão justamente sobre isso: sobre o pajubá. Que era o jeito como se comunicavam (e se comunicam) entre si gays, travestis, trans e mais aquelxs que até então ainda não tinham sido nomeados. Inicialmente, como se sabe, para despistar a polícia, os alibãs. Acuendar o pajubá era mais do que pertencer, era se proteger.

Vladimir Safatle diz que, hoje, o conflito é sobre formas de vida. Lá atrás, as pessoas estavam só cobrindo a pele com tatuagens, experimentando piercings e encontrando versões mais livres de si mesmxs, sobretudo no que tocava sexualidade. Gênero não tinha ganhado esse nome ainda. As pessoas apenas existiam e tentavam sobreviver, tanto em visibilidade quanto na luta contra a Aids.

Daí que hoje essa resistência das micropolíticas se relaciona aos âmbitos não apenas de gênero e sexualidade, mas também de raças e etnias, na defesa de corpos e modos de existência para muitos desafiadores —desviantes. Por tudo o que fizemos, e vivemos, já era para estarmos mais adiantados, e sobretudo, não é para retrocedermos.

Do que a individualista geração 1990 não fez (ou não pôde fazer) está o corrente gosto pelo coletivo e por suas vozes, que desde o junho de 2013 ecoam por toda São Paulo. Elas podem vir das franjas das cidades, das periferias; da ocupação dos centros e de seus meios-fios, dos refugiados da República; dos slams das minas. Das minas.

De manas como Linn da Quebrada e Jup do Bairro, em sua potente performatividade e em seu pluralismo existencial. De bandos como a Mamba Negra, capitaneado pela distópica transgressora Laura Diaz, em seu vocabulário glauberiano e alma de coquetel molotov, tendo no extraordinário performer Loïc Koutana sua pedra, preta e fundamental. Do tropicalismo psicodélico da Venga Venga, mas não somente das festas de rua.

Essa energia está também nas resilientes conversas e ações da estilista pensadora Karlla Girotto com seu grupo na Casa do Povo; nos desfiles como os do Brechó Replay e Isaac Silva na Casa de Criadores, falando de inclusão, diversidade e respeito, onde agora estreia a estilista Vicente Perrotta e seu elenco trans.

Do underground, mais uma vez, vem a renovação. Agora que a moda não importa mais, buscamos significados no desejo, em direção a uma expressão pessoal que valorize o indivíduo e suas escolhas.

Vestir-se está cada vez mais político. Viver também.

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