Cantoras transexuais aprendem a domar a beleza peculiar da voz em transição

Leva recente de vocalistas que despontam na música comenta como fizeram as pazes com suas cordas vocais

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Assucena Assucena, Raquel Virgínia, vocalistas da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, e a cantora trans Verónica Vallentino

Assucena Assucena, Raquel Virgínia, vocalistas da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, e a cantora trans Verónica Vallentino Adriano Vizoni/Folhapress

São Paulo

​​“Quem me vê assim cantando / não sabe nada de mim / dentro de mim mora um anjo / que tem a boca pintada / que tem as asas pintadas / que tem as unhas pintadas / que passa horas a fio no espelho do toucador.” 

Quando o poeta Cacaso tematizou as transexuais no poema “Dentro de Mim Mora um Anjo”, ele não imaginava que seus versos cairiam como uma luva para descrever o cantar de uma nova geração de vozes na música brasileira.

A leva recente de transexuais e travestis a tomar os palcos, a exemplo das vocalistas do grupo As Bahias e a Cozinha Mineira e as cantoras Verónica Valenttino, Linn da Quebrada e Liniker —sem contar a drag queen Pabllo Vittar—, trouxe a reboque uma nova voz, que se relaciona de maneira peculiar com o sexo biológico de seus donos.

Assucena Assucena, da banda As Bahias e Cozinha Mineira, diz que, na infância, era pressionada para usar o timbre de acordo com o gênero de nascença —o masculino. “Me ensinaram que voz fina é de menina, e que quem nasce com pênis aprende a falar grosso. Mas, mesmo que a minha voz fosse grave, minha identidade não era aquela”.

Ela conta que chegou a ouvir reclamações da sua família por só escutar cantoras mulheres, como Sandy e Whitney Houston. “Eu era a criança viada que corria pela casa cantando ‘I Will Always Love You’.” A faixa da americana, com longas passagens em falsete no refrão, ganhou o mundo em 1992 na trilha sonora do filme “O Guarda Costas”.

Rita Maria, professora de canto de Assucena Assucena —e também de Raquel Virgínia, a outra vocalista trans do As Bahias— diz que não há diferenças entre ensinar vocalistas que trazem para a aula questões de identidade de gênero e cantores que não lidam com esse mesmo ponto.

No caso de Assucena e Virgínia, a professora diz que a voz está a serviço da performance e da expressividade e, por mais que ambas se inspirem em Gal Costa, elas não pretendem imitá-la. “O que ouço na voz delas é uma voz que não se limita. Não querem cantar igual a uma mulher, querem cantar igual a elas mesmas.”

Assucena diz que, embora tenha buscado uma tonalidade mais feminina para o seu canto no passado, atualmente não tem mais a preocupação de deixar os graves de lado quando está no palco. 

“O timbre em que vou cantar é de acordo com o eu lírico, com o personagem da música, com a sensação que quero passar. Hoje amo cantar grave, eu quero a voz da Ivete Sangalo, gravíssima. Temos que sair de certas formatações sociais, do que esperam que a gente seja”, afirma.

Esses padrões sociais estabelecidos foram sentidos na pele —ou na voz— por Verónica Valenttino, a líder da banda cearense de disco punk Verónica Decide Morrer. Nascida menino, ela conta que, ao contrário de Assucena, nunca foi uma criança com voz grossa. A sonoridade delicada a levou a sofrer bullying.

Durante seus estudos de teatro, nos anos 2000, ela começou a assumir uma identidade feminina, processo que levaria à criação da banda, em 2010. Aos poucos, Valenttino passou a se identificar como mulher travesti, que define como “corpo bizarro, em transformação, que nega o masculino que me foi imposto”.

Embora se inspire em Gal Costa, Ney Matogrosso, Elza Soares e Angela Ro Ro, Valenttino diz que a transição não fez com que mudasse conscientemente nem o timbre nem o tom com que canta. 

“As pessoas imaginam que, se virou travesti, já tem que começar a anasalar a voz. Claro que a gente começa a descobrir um outro corpo, uma outra voz, mas isso não é forçado —é algo fluido e natural, que vem pelo empoderamento do gênero”, ela afirma.

Pabllo Vittar, que lança seu segundo disco  no início de outubro, também viveu essa tomada de consciência. “Na adolescência, minha voz bem mais aguda me fez sofrer muito”, diz a cantora. “Hoje busco estudar para encontrar cada vez mais técnicas e locais da minha voz que não conhecia. Estou mais confortável, mais segura e entendo melhor a minha voz.”

Pelo lado médico, a voz responde de maneiras diferentes na transição de mulher para homem ou de homem para mulher. No primeiro caso, os hormônios masculinos engrossam naturalmente a voz feminina. Mas, no segundo caso, isso não ocorre, já que os hormônios femininos não tendem a afinar o som. 

As alternativas são um tratamento de agudização das cordas vocais com uma fonoaudióloga ou uma cirurgia de laringe, opção considerada mais radical pelos médicos.

Daniela Galli, fonoaudióloga especializada no atendimento a transexuais no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, afirma que nem todos querem mudar de voz para adaptá-la ao novo corpo, porque “nem todas as pessoas são binárias”.

Ela acrescenta que o som produzido pelas pregas vocais da laringe é apenas um dos elementos para se parecer mais com um gênero ou outro. “Não se trata só de ter uma voz mais grave ou mais aguda, e sim do contexto da comunicação, da roupa que você está vestindo, do lugar onde você está, da entonação e do vocabulário que usa.”

Raquel Virgínia, do grupo As Bahias, entende isso bem. “Tenho uma voz elegante, mas me acho elegantérrima como um todo, amor”. 

Colaborou João Paulo Martins

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