Descrição de chapéu Livros

Assídua nas redes, freira feminista radicada em João Pessoa lança quatro livros em 2018

Prolífica mesmo cega de um olho, Maria Valéria Rezende, 75, foi amiga de García Márquez e achou bom ter livro mal avaliado

KATIA CALSAVARA
São Paulo

Freira e feminista, amiga de García Márquez e Fidel Castro, escondeu militantes contra a ditadura e dormiu em rodoviária pra escrever romance. A biografia da escritora santista Maria Valéria Rezende, 75, é sedutora como seus livros, mas quase sempre aparece mais do que eles. “Os rótulos nada têm a ver com a minha escrita, as pessoas insistem. Parece até que passei a vida de braços dados com celebridades”, diz.

Mas é irresistível contar um pouco de sua história. Freira e fumante desde os 24 anos, morou na China, no México, na Argélia e no Haiti, entre outros países, em missões de alfabetização.

Faz parte da Congregação Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho, que ajudou a disseminar a Teologia da Libertação em Cuba nos anos 1980 e 1990. Publicou seu primeiro livro, “Vasto Mundo” (2001), aos 60 anos e ganhou prêmios literários importantes.

Em 2016, ela levou um Jabuti e o prêmio da Câmara Brasileira do Livro pelo romance “Quarenta Dias”. No ano passado, ganhou o São Paulo de Literatura e o Casa de las Américas por “Outros Cantos”. Os dois livros saíram pela editora Alfaguara.

Além disso, recebeu outros prêmios e várias indicações por sua obra para crianças e jovens, que já tem dez títulos.

Agora, ela se prepara para lançar seu quarto romance para adultos, o aguardado “Carta à Rainha Louca”, previsto para este ano.

O livro surgiu de um processo de pesquisa histórica realizado nos anos 1970 e 1980 sobre a igreja e a vida das mulheres brasileiras no período colonial.

“Descobri que os conventos não eram instituições religiosas e sim esquemas para dar conta das mulheres. Eram lugares onde as famílias guardavam algumas filhas enquanto usavam outras para fazer alianças de casamento com poderosos”, afirma.

Em “Carta”, ela mistura sua linguagem contemporânea e criativa com a do século 18 para dar voz a uma mulher encarcerada.

Sempre envolvida na luta pelos direitos das mulheres, a autora acredita que o mais difícil é o diálogo entre as gerações.

“Nós, as mais velhas, conhecemos o caminho longuíssimo feito até aqui, não sei até que ponto as muito jovens estão atrás de causas imediatas. Tudo nesse mundo está sendo repensado, até o vocabulário mudou. É difícil acompanhar”.

Mesmo cega de um olho e com catarata no outro, ela usa bastante a internet. Recentemente até se envolveu em uma discussão acalorada a respeito de uma crítica negativa que recebeu por “Outros Cantos” e repostou em sua página.

“Achei foi bom uma crítica acabando com o livro. Sempre tive resenhas ‘boazinhas’ que me deixavam desconfiada, tipo ‘por ser de uma freira velhinha lá da Paraíba, tá bem bonzinho’.”

Maria Valéria vive há 20 anos em João Pessoa com outras três irmãs idosas de sua congregação em uma casa com um grande jardim. Lá, elas cultivam e comem alimentos orgânicos. As quatro se revezam entre si nos cuidados da casa e delas mesmas, inclusive nas idas e vindas aos postos de saúde. “Escrevo até na sala de espera, afinal ali ninguém pergunta o que você veio fazer”, diz.

Mesmo com títulos publicados por grandes editoras, ela conta que, exceto na época dos prêmios, eles são difíceis de encontrar. “Com o dinheiro dos prêmios, ajudei a resolver problema dos outros e comprei exemplares dos meus livros para fazer uma livraria virtual. Agora preciso ver como pagar o imposto de renda”.

Mas ela também incentiva e apoia a produção de editoras independentes. Em março, publicou a coletânea de contos “A Face Serena”, pela Penalux, de Guaratinguetá (SP). No mês passado, lançou “Conversa de Jardim”, pela editora Moinhos, em parceria com o amigo Roberto Menezes. Em uma espécie de prosa fiada, os dois falam sobre vida, literatura, trabalho, prêmios e outros temas.

Neste mês, sai ainda o livro-caderneta “Ninho de Haicais”, pela Casa Verde, de Porto Alegre (RS). Com um haicai em cada página, tem também espaço em branco para o leitor fazer seus versos.

“Em breve vamos selecionar o melhor conjunto de haicais e lançar uma nova edição”, afirma a editora Laís Chaffe.

Maria Valéria diz bolar um projeto novo a cada dia. “Nunca sofri de tédio, nem sei o que é isso. O que me barra agora é essa carcaça velha, as limitações físicas.” Imagine só se ela não as tivesse.

Trecho de “Carta à Rainha Louca”

"Muito tenho hesitado em escrever-Vos, Majestade, pois bem sei que mesquinhos são os infortúnios que Vos hei de relatar se comparados àqueles trabalhos que, desde Vossa régia infância, certamente tendes passado, que Rainha sois, mas nem por isso sois menos mulher e sofrer e chorar é o quinhão de todas as filhas de Eva, não obstante sua condição neste mundo, porque em todas as condições, aqui nestas colônias, em África, nas Índias, na China ou no Reino, no paço real ou na mais pobre aldeia do Vosso Império, estão submetidas às leis dos homens que muito mais duras são para as fêmeas e só para elas se cumprem, pois todos os seus pais e irmãos e maridos e filhos e varões quaisquer, clérigos ou seculares, só as querem para delas servirem-se e para dominá-las como aos animais brutos se faz, blasfemando vergonhosamente ao emprestar-lhe a Deus Nosso Senhor tão cruel desígnio. Perdoai-me a rasura, Senhora, que se me ia a pena correndo sem peias pelo papel. Corria a pena levada por inconvenientes palavras que teimam em escapar do sítio onde trato de tê-las bem atadas no meu espírito − já que delas não me posso livrar − para que não me venham a fugir pela boca e dar razão a quem por louca me toma."

Do "Ninho de haicais":

nas escuras grotas
brotam mil formas de vida
rasteiras, futuras.

sol, sal, maresia,
rumor das ondas, areia,
meus cinco sentidos.

perdida, a cigarra
vagabundeia entre livros
no criado mudo.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto informava que a freira ajudou a disseminar a Teoria da Libertação, não a Teologia da Libertação. 

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