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Bellocchio roda filme sobre mafioso preso no Brasil e que delatou comparsas

'O Traidor', drama biográfico sobre Tommaso Buscetta, tem Maria Fernanda Cândido no elenco

Cena do filme 'O Traidor', de Marco Bellocchio

Cena do filme 'O Traidor', de Marco Bellocchio Laura Campanella / Serendipity Inc./Divulgação

Guilherme Genestreti
Rio de Janeiro

Décadas antes de Cesare Battisti, houve Tommaso Buscetta —outro italiano que se abrigou em terras brasileiras da Justiça de seu país. E na mesma semana em que o primeiro é declarado foragido, o segundo tem sua história cheia de assassinatos, delações e atritos com a máfia recontada em filme. 

É numa mansão no alto do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, que o cineasta Marco Bellocchio —dos últimos remanescentes da geração clássica de cineastas da Itália—roda o longa “O Traidor”.

Debaixo de um sol de 33º C, o diretor de 79 anos comanda uma tropa de figurantes trajando uniforme do Exército brasileiro, alguns munidos de pastores alemães e dobermanns salivantes. “Stop! Stop! Mas por que ‘cazzo’ mudou a luz?”, pergunta à equipe de filmagem com sua maneira exaltada, passando a (falsa) impressão de estar furioso.

A cena rememora o momento em que Buscetta foi capturado nos anos 1980 e extraditado para o seu país de origem. Lá, o gângster fecharia um acordo com o juiz Giovanni Falcone e delataria ex-companheiros e o funcionamento da Cosa Nostra, a máfia siciliana de que ele fez parte. 

O enigma sobre os motivos que o levaram a dedurar seus comparsas incita o cineasta.

“Não se sabe se ele o fez por conveniência ou por vingança”, diz Bellocchio. “E é uma traição psicanalítica, porque vai contra os princípios da máfia, de que ele era muito fiel.”

O tema da traição foi a chave “autobiográfica” que o diretor encontrou para o projeto. “É um assunto universal. Eu traio os princípios da minha educação católica e da cultura comunista que tive”, diz. Nascido na região da Emília-Romanha, centro gravitacional da esquerda na Itália, dirigiu obras de teor político como “Bom Dia, Noite”, “Vincere” e “O Monstro na Primeira Página”. 

Na pele desse que foi talvez o maior dos “pentiti” (como ficaram conhecidos os criminosos que cooperaram com o Judiciário) está o romano Pierfrancesco Favino. Aturdido, seu personagem é surpreendido pela chegada da polícia militar em seu casarão carioca.

Ao seu lado, segurando o bebê do casal, paira a atriz Maria Fernanda Cândido, que interpreta a sua terceira mulher, a brasileira Maria Cristina. 

O delegado anuncia a prisão, pronunciando o sobrenome do criminoso como se fosse “Busqueta” —a forma com que telejornais brasileiros, um tanto constrangidos, se referiam a ele. O mafioso corrige, irritado: “É Buxeta.”

Bellocchio repete o curto trecho quase a tarde inteira até ficar satisfeito. Num intervalo e outro dos takes, anuncia mudanças de última hora. Pede a alguém da equipe que encontre um galpão abandonado no Rio, algo com cara de estação de trem desativada, para filmar logo mais. “Ele mudou de ideia. De novo”, ri um de seus produtores italianos. 

Impera no set uma anarquia eficiente que só a mistura do Rio com a Itália proporcionaria. Quem circula por ali como tradutor desses dois mundos é o também cineasta André Ristum, de “O Outro Lado do Paraíso” e “A Voz do Silêncio”. 

O diretor brasileiro iniciou a carreira nos anos 1990 como assistente de Bernardo Bertolucci, que já foi chamado de rival do diretor de “O Traidor”.

Ristum ajudou na escolha do elenco da cinebiografia sobre Buscetta e palpitou nos diálogos e na caracterização, “para evitar erros sobre o Brasil que poderiam ser cometidos por estrangeiros”. “Ele não queria o olhar de gringo”, diz.

Produtores do braço brasileiro do longa, os irmãos Caio e Fabiano Gullane concordam. 

“O personagem foi um cara que se imiscuiu e viveu o estilo brasileiro”, afirma Fabiano. “E Bellocchio quis ser genuíno: buscou os bares que ele de fato frequentaria, botou as músicas que ouviria.”

O Brasil tem papel central na trajetória de Tommaso Buscetta. Foi para o país, onde o siciliano viveu com passaporte falso, que ele fugiu duas vezes —a última, entre os anos 1970 e 1980, para escapar das guerras internas na máfia que assolaram a Itália.

Antes disso, viu dois de seus filhos serem assassinados por rivais, envolveu-se com o tráfico de cocaína e de heroína em Nova York e disfarçou o rosto com cirurgias plásticas. 

O mafioso aderiu à Cosa Nostra aos 17 para escapar da pobreza que dominava Palermo no ano derradeiro da Segunda Guerra. Dizia ter perdido a virgindade aos oito anos com uma prostituta que só exigira uma garrafa de azeite.

Foi no Brasil que ele conheceu sua última mulher, Maria Cristina. Para vivê-la em “O Traidor”, o diretor Marco Bellocchio escalou aquela que talvez seja a mais italiana das atrizes do país, a paranaense Maria Fernanda Cândido.

O cineasta vê nela algo de Sophia Loren. “Teria sido um erro terrível escolher uma não brasileira. É ela quem vai permitir entrar nesse mundo.”

A atriz vê no papel a figura “transgressora de uma mulher que desafiou os pais para sustentar uma paixão até o fim”.

Nos anos em que Buscetta colaborou com o juiz Giovanni Falcone, ela o apoiou. 

Cândido conta que a produção tentou entrar em contato com a verdadeira Maria Cristina, mas o paradeiro dela após a delação de  Buscetta é desconhecido. Ela teria permanecido ao lado do marido até a morte dele, em 2000.

Seu marido na ficção, o ator Pierfrancesco Favino diz que foi cativado pela história desse “filho de vidraceiro que produzia espelhos e que passou a vida mudando de imagem”.

Ele se sente instigado em interpretar um mafioso, essa figura emblemática tanto no cinema americano quanto no italiano. “É um arquétipo que encanta porque as pessoas são atraídas pelo que não podem fazer, porque em cada uma delas há o desejo de desobedecer”, comenta Favino.

A mesma desobediência que colocou Buscetta na mira da Justiça e o forçou a fugir para o Brasil foi o que fez o seu conterrâneo Cesare Battisti, mais tarde, buscar refúgio no país.

Membro de um grupo militante de esquerda que cometeu atentados políticos na Itália, Battisti foi declarado foragido na mesma semana em que Bellocchio filma a história de Buscetta no Rio de Janeiro.

A coincidência não passa despercebida ao cineasta, embora ele veja diferenças entre esses dois párias italianos. 

“Um era um ignorante, um homem tradicional que vinha de um mundo de mafiosos, que são criminosos, mas respeitam as tradições”, diz. “O outro é um ideólogo marxista, agindo em nome de certos princípios, mas que também cometeu os seus crimes.”

O diretor discorda do asilo político concedido a Battisti durante o primeiro governo do PT. 

“Como italiano, acho incompreensível que Lula tenha rejeitado a extradição dele, que foi condenado no meu país.”

Enquanto Bellocchio fala, brasileiros e italianos desmontam o set de “O Traidor”. Ao fundo, alguém dedilha “Imagine” no piano e colares havaianos começam a ser distribuídos para o que se anuncia como uma festa na piscina.

O diretor não se decidiu sobre o local onde filmará algumas das próximas cenas. André Ristum, que faz a ponte entre os dois povos, lembra da sua experiência com Bertolucci. “Ele me repetia um conselho ouvido de Jean Renoir para deixar sempre uma porta do set aberta ao imprevisto. Com o Bellocchio, a porta está sempre escancarada.”

O jornalista viajou a convite da produção

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