Feito no fim da vida, último álbum de Wilson Moreira promove viagem à infância

Histórias com jeito de criança são contadas nas faixas de 'Tá com Medo, Tabaréu?'

Luiz Fernando Vianna
Rio de Janeiro

Corre no meio do samba que Wilson Moreira foi fazer um curso com Guerra-Peixe, nos anos 1970, e mostrou algumas de suas músicas. Impressionado após ouvi-las, o maestro teria dito a uma assistente: "Traz logo um diploma para esse rapaz. Se estudar muito, ele vai se estragar".

Morto em 6 de setembro, aos 81 anos, Moreira carregava em suas composições a memória da infância na então rural zona oeste carioca, em meio a descendentes de africanos escravizados e tradições como o jongo e o calango.

No final da vida, Moreira se ocupou do início dela. Gravou em 2018 um CD com dez músicas sobre o universo infantil. Soltar pipa, por exemplo, inspirou a faixa-título "Tá com Medo, Tabaréu?".

O trabalho, idealizado pelo produtor Camilo Árabe e pela mulher de Moreira, Angela Nenzy, foi lançado com show no Rio e está chegando às plataformas digitais.

senhor sentado em banco com gato no primeiro plano
O sambista Wilson Moreira - Olivia Nachle/Divulgação

"Com o Wilson era assim: você pensava que ele vinha com 'Atirei o Pau no Gato', mas ele vinha com coisas muito boas", diz Paulão Sete Cordas, diretor musical do CD. "Ele já estava cansado nas gravações, mas fizemos tudo de verdade, sem nenhum tipo de artifício."

Angela Nenzy, que foi casada com o sambista por 26 anos, temeu que ele não conseguisse concluir o projeto.

O câncer na próstata e a diabete estavam minando o homem de notória força física: ganhara o apelido de Alicate, por causa do caloroso aperto de mão, e resistira ao derrame sofrido em 2 de fevereiro de 1997.

Não foi uma vida fácil. Quando criança, levava dinheiro para casa trabalhando como guia de cego, vendedor de amendoim e o que mais surgisse. Tornou-se agente penitenciário e sempre foi respeitado pelos detentos por não agredi-los.

Seu principal parceiro musical foi Nei Lopes. Ao conhecimento atávico do primeiro somou-se a formação do segundo, intelectual dedicado à cultura afro-brasileira. A dupla criou "Senhora Liberdade", "Coisa da Antiga", "Goiabada Cascão", "Gostoso Veneno" e outros sambas marcantes.

"O Wilson era, como compositor, o que Clementina de Jesus fora, no início da carreira, como cantora. Era aquela voz que vinha lá das fazendas de café do Vale do Paraíba", explica Lopes. "Dar tratamento poético às canções, para que fossem ouvidas e lidas com mais respeito, era o que eu desejava. Mas só consegui em parte, por razões mercadológicas."

Entre os outros parceiros de Moreira está Zeca Pagodinho, amigo 23 anos mais jovem, com quem fez "Judia de Mim" e "Quintal do Céu".

"Ele era um grande compositor, um homem honrado. Era também um grande contador de histórias. Fazia diferença e, agora, faz falta", diz Zeca Pagodinho.

Histórias com jeito de criança são contadas em "O Bom Passarinho", "Um Canto Universal" e demais faixas de "Tá com Medo, Tabaréu?". E há outras músicas que, segundo Angela Nenzy, o autor deixou registradas em cadernos e fitas.

Ela quer reunir todo o acervo, inclusive o terno com que ele desfilava na Portela, no Solar Wilson Moreira, que fica na praça da Bandeira, no Rio, sempre às voltas com a falta de recursos. "Não posso fechar. Cada vez que vinha ao solar, ele renascia", diz Nenzy.

Tá com Medo, Tabaréu?

Músico: Wilson Moreira. Gravadora: Independente. R$ 30 e plataformas digitais

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