Em 103 anos de vida, o chileno Nicanor Parra, morto em janeiro deste ano, praticou o que chamou de "antipoesia". E ele não está sozinho nessa aventura, já que outros poetas do século 20, em diversas línguas, também encararam o verso com os pés no chão, distante dos altos voos e das metáforas grandiloquentes.
Em "Só Para Maiores de Cem Anos" —coletânea que traz boa seleção e fluente tradução de seus antológicos poemas— temos um Parra que escreve: "a poesia reside nas coisas", ao que acrescenta: "Contra a poesia da nuvem/ Nós opomos/ A poesia da terra firme".
Que o leitor não confunda firmeza com fixidez. "Melhor se fazer de tonto/ Eu digo uma coisa por outra", afirma em "Poemas e Antipoemas", volume de 1954, marco da literatura em espanhol.
Depois, no livro "Versos de Salão", de 1962, ele confirma que tal instabilidade significa insubordinação: "O poeta não cumpre sua palavra/ Se não mudar o nome das coisas".
Trilhando os caminhos da inquietação e da indisciplina, os textos de Parra vão ganhando mais força. Tanto que se costuma dizer que sua obra se rebela contra os conterrâneos Gabriela Mistral e Pablo Neruda. Isso é verdade, e os versos de "Solilóquio do Indivíduo" não deixam mentir, afinal respondem ao "Canto Geral", de Neruda.
Mas é verdade também que os "antipoemas", de modo astuto, se voltam contra si mesmos: "A poesia se comportou muito bem/ Eu me comportei horrivelmente mal./ A poesia terminou comigo".
A autoderrisão bem-humorada de Parra não funciona como estratégia para fisgar nossa fácil simpatia. Ao contrário, é condição para um pacto desconcertante com o leitor.
Por exemplo, num dos poemas iniciais, lê-se: "O autor não responde pelos incômodos que seus escritos possam provocar". Já entre os últimos, surge o aviso: "Generoso leitor/ queime este livro/ Não representa o que eu quis dizer".
Muitas vezes, a personagem do escritor brinca com o lugar público de enunciação, ironizando assim a função do poeta oficial e politicamente participativo: "Atenção, senhoras e senhores, um minuto de atenção".
Por conta desse lugar, não é estranho que o orador teste seu canal: "Será que entendem o que estou dizendo", pergunta o sujeito morto-vivo no texto "O que o Defunto Disse de Si Mesmo". Já em versos sobre Freud —entre digressões, tal qual numa sessão— o autor pede: "Mas retornemos ao nosso poema".
O antagonismo mordaz da poesia de Parra é profícuo. Entre versos feitos a partir de material religioso, encontra-se: "Cordeiro de deus que lava os pecados do mundo/ Me dê sua lã para eu fazer suéter".
Sobre o seu triste Chile, o poeta acaba por mudar de tom: "Cada vez que regresso/ A meu país/ depois de uma longa viagem/ A primeira coisa que faço/ É perguntar pelos que morreram (...)/ E em segundo lugar/ pelos feridos.// Só depois/ não antes de cumprir/ Este pequeno rito funerário/ Me considero com direito à vida".
É por essas e outras que Parra assegurou, faz tempo, cadeira cativa no seleto grupo dos poetas que vão viver para sempre.
Leonardo Gandolfi é professor de literatura portuguesa da Unifesp e poeta
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.