Descrição de chapéu Livros

Autores clássicos como Machado de Assis também escreveram ficção científica

Gênero que é considerado menor na literatura nacional teve Lima Barreto entre seus adeptos

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Machado de Assis fotografado por Marc Ferrez
Machado de Assis fotografado por Marc Ferrez - Divulgação
São Paulo

Embora ainda seja considerada por muitos um gênero menor na literatura brasileira, a ficção científica faz parte da história dos livros no país e está presente na produção de vários escritores considerados clássicos.

Tanto que o livro vencedor do prêmio Jabuti de romance de 1977, por exemplo, foi uma ficção científica. Na distopia “O Fruto do Vosso Ventre”, lançado pela Civilização Brasileira, Herberto Sales escreve sobre uma ilha na qual um governo totalitário e tecnocrata interfere na vida dos cidadãos e limita seu poder de escolha para manter a ordem e o equilíbrio ambiental.

O romance faz parte de um período da literatura brasileira que ganhou força nos anos 1970, chamado pelo pesquisador e escritor Roberto de Sousa Causo de “onda de utopias e distopias”, quando autores que faziam parte do mainstream literário apelaram para os gêneros de ficção científica e fantasia para criticar a estrutura autoritária da ditadura militar.

São dessa época o conto “Seminário dos Ratos” (1977), de Lygia Fagundes Telles, a novela “Fazenda Modelo” (1974), de Chico Buarque, e o romance “Não Verás País Nenhum” (1981), de Ignácio Loyola Brandão —três narrativas que derivam, em algum nível, das obras “1984” e “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell.

Na história de Lygia e na de Chico, os animais são os protagonistas de parábolas sobre poder e dominação social. Na obra distópica de Loyola Brandão, o autor aborda um tema que só ocuparia o noticiário mais de 20 anos depois: o aquecimento global, representado por um sol escaldante e refugiados ambientais.

Mas escritores brasileiros têm explorado a ficção especulativa desde antes, pelo menos desde a metade do século 19. Segundo Causo, o marco inicial foi em 1857, com o conto “O Fim do Mundo em 1857”, de Joaquim Manuel de Macedo, autor de “A Moreninha”.

Nele, o autor especula sobre a destruição do Rio de Janeiro com a colisão de um cometa  e aproveita a possibilidade para criticar a sociedade e o governo da época.

“Qualquer abordagem desse tipo pode ser classificada como ficção científica, mesmo que o autor jure que não tenha simpatia pelo gênero. É a temática que define o gênero”, afirma Braulio Tavares, escritor e estudioso do assunto.

Em 1872, Machado de Assis também entrou para o grupo com o conto “Rui de Leão”, sobre um homem que vai viver entre os índios e recebe um elixir da imortalidade. Dez anos depois, Machado reescreveu a história e a republicou com o título “O Imortal”.

Para o escritor Luiz Bras, esses textos têm valor histórico, mas não costumam contar com a mesma qualidade literária de outras obras desses mesmos autores.

“Essas produções tiram os escritores do realismo, de sua zona de conforto, mas são geralmente maçantes e conservadoras. Só a partir dos anos 1950 o gênero deixa de ser um exercício de estilo e passa a ter autores comprometidos com a ficção científica”, diz Bras.

A influência estrangeira era um dos principais motivadores para que histórias especulativas surgissem por aqui. Em 1912, o britânico Arthur Conan Doyle publicou “O Mundo Perdido”, sobre aventuras de um cientista e um jornalista ao encontrarem uma região na Amazônia onde animais pré-históricos ainda viviam.

A publicação teve ecos no Brasil e fez surgir textos como “A Amazônia Misteriosa” (1925), de Gastão Cruls, e “A Filha do Inca” (publicado originalmente com o título “A República 3000”), lançado em 1927 por Menotti del Picchia, escritor paulista que alcançou sucesso após seu livro de poesia “Juca Mulato” (1917). 

Júlio Verne e H. G. Wells também teriam influenciado brasileiros como Monteiro Lobato, afirma o pesquisador Roberto de Sousa Causo.

Um exemplo está em “O Presidente Negro”, único romance de Lobato, com inspiração eugenista, publicado em 1926. Na história, um dispositivo permite enxergar o futuro caótico vivenciado pelos Estados Unidos após a ascensão de um negro à Presidência.

Em 2005, Braulio Tavares publicou “A Pulp Fiction de Guimarães Rosa”, pela editora Marca de Fantasia, livro no qual analisa a produção de Rosa no gênero. Segundo ele, o autor tinha em sua biblioteca livros de Wells e outros clássicos da literatura fantástica.

Na coletânea “Primeiras Estórias” (1962), Rosa incluiu o conto “Um Moço Muito Branco”, que narra o aparecimento de um rapaz com características alienígenas.

“Nenhum desses autores procurou chamar a atenção de maneira especial para essa produção. Para eles, eram provavelmente experiências um pouco afastadas de sua temática habitual, mas acho que não viam nisso uma qualidade especial nem um defeito”, afirma Tavares.

Embora essas histórias não teriam motivado mais leitores a entrarem no universo da ficção especulativa, elas foram, naqueles tempos, uma oportunidade de os escritores experimentarem um texto inventivo, conclui.

O filão atrai editoras hoje em dia. No ano passado, a Plutão Livros nasceu com a publicação de “Sobre a Imortalidade de Rui de Leão”, edição digital que reuniu os contos “Rui de Leão” e “O Imortal”, de Machado de Assis. Neste ano, a editora deve lançar pelo menos três obras clássicas do gênero.

“Queremos equilibrar publicações contemporâneas e as mais clássicas. A história da nossa ficção científica sempre foi bastante negligenciada dentro da literatura brasileira”, afirma André Caniato, editor da Plutão.

 

Uma arqueologia da ficção científica brasileira

1857
‘O Fim do Mundo em 1857’ 
conto de Joaquim Manuel de Macedo
Narra a destruição do Rio de Janeiro por um cometa

1872
‘Rui de Leão’
conto de  Machado de Assis
A história de um homem que vai viver em um aldeia indígena, onde recebe um elixir da imortalidade; foi republicado dez anos depois com o título ‘O Imortal’

1910
‘A Nova Califórnia’
conto de Lima Barreto
Um químico descobre como transformar ossos em ouro e leva uma pequena cidade ao caos

1926
‘O Presidente Negro’
romance de Monteiro Lobato
Um dispositivo é usado para ver o futuro dos Estados Unidos, quando um candidato negro se destaca na corrida pela Presidência do país

1930
‘A República 3000’ ou ‘A Filha do Inca’
romance de Menotti del Picchia
Militares em expedição científica pelo interior do Brasil encontram uma civilização isolada e tecnologicamente avançada

1939
‘Viagem à Aurora do Mundo’
romance de Érico Veríssimo
O autor usa as viagens no tempo para contar uma história da evolução da vida na Terra

1974
‘Fazenda Modelo’
novela de Chico Buarque
Narra a vida em uma fazenda e usa a estrutura do lugar como alegoria de um regime totalitário

1976
‘O Fruto do Vosso Ventre’
romance de Herberto Sales
Distopia sobre uma sociedade isolada sob um governo tecnocrático e autoritário; venceu o prêmio Jabuti de 1977 na categoria de romance

1981
‘Não Verás País Nenhum’
romance de Ignácio de Loyola Brandão
Obra distópica que narra um futuro com o ambiente degradado e desastres ambientais

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