Descrição de chapéu The New York Times

'Eu não imaginei que 'Família Soprano' desbravaria novos territórios', diz criador

Estreia da série sobre mafiosos completa 20 anos nesta quinta-feira

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Jeremy Egner
Nova York | The New York Times

"Dizer 'você se lembra de quando...' é a forma mais baixa de conversação", Tony Soprano comentou certa vez com seus capangas da máfia, em "Família Soprano".

Se David Chase, o criador de Tony, não concorda totalmente com essa avaliação —"foi um amigo meu de escola que disse isso", ele afirma—, não quer dizer que goste especialmente de reminiscências nostálgicas.

"É uma coisa barata. Fico furioso", ele disse, na semana passada. "Pensei que revisitar a série seria mais prazeroso, mas a verdade é que esqueci muito mais coisas do que imaginava."

E no entanto, recordações são inevitáveis neste mês. Na quinta-feira (10), a estreia de "Família Soprano" na HBO chega ao seu 20º aniversário —um momento que teve importância especial para o lançamento de uma era televisiva que continua a florescer, com narrativas ambiciosas e credibilidade artística.

Sensação imediata —o New York Times definiu a série em 1999 como "talvez a maior obra da cultura popular americana no último quarto de século"—, "Família Soprano" demonstrou que os telespectadores estavam dispostos a aceitar programas de TV não convencionais, e abriu caminho para o que viria a ser conhecido como "TV de prestígio".

Séries complexas e ambiciosas já haviam sido produzidas, como "Twin Peaks", "Arquivo X" e "NYPD Blue". Mas ao longo de seis temporadas na HBO, a história excêntrica de Chase sobre Tony Soprano, um chefe do crime organizado deprimido e violento, mas estranhamente simpático, interpretado por James Gandolfini (que morreu em 2013), expandiu dramaticamente os parâmetros das séries de TV, combinando a trama criminosa muitas vezes chocantemente brutal a momentos de humor pastelão, lógica onírica e inventividade narrativa.

Frases como "o russo no bosque" e "corte para a tela preta" se tornaram jargões da cultura pop, para definir uma abordagem intransigente e artística quanto à produção televisiva, que influenciou não só outras histórias sobre anti-heróis, a exemplo de "Breaking Bad" e "The Shield", como também um conjunto muito diversificado de séries singulares como "Mad Men", "Transparent" e "Atlanta".

"Eu não imaginei que 'Família Soprano' desbravaria novos territórios", disse Chase. "Tudo que eu queria era ficar o mais perto possível do cinema."

cinco homens em um cemiterio
James Gandolfini, Steven Van Zandt, Michael Imperioli, Vincent Pastore e Tony Sirico em "Família Soprano" - Divulgação

No tempo transcorrido desde que "Família Soprano" cortou para a tela preta, em 2007, Chase dirigiu "Not Fade Away", um filme sobre o rock da década de 1960, e escreveu outras séries e filmes que ainda não foram produzidos. Depois de anos resistindo a propostas para que desenvolvesse outras histórias sobre a máfia, ele está trabalhando agora em "The Many Saints of Newark", um filme que narra uma história acontecida antes do período de "Família Soprano". A história se passa em Newark, na década de 1960, e o protagonista é o pai de Christopher Moltisanti (personagem interpretado por Michael Imperioli em "Família Soprano"). O filme deve ser lançado em 2020, segundo Chase.

Acomodado em seu apartamento no Upper East Side, bem perto da mesa em que escreve, Chase foi conciso mas se esforçou por responder de maneira ponderada a todas as perguntas sobre "Família Soprano", com seu jeito áspero temperado por um humor muito seco.

Em excertos editados dessa conversa e de uma entrevista anterior para um projeto de vídeo do The New York Times, ele discute o legado de "Família Soprano", a possibilidade de um emprego para A. J. (Robert Iler) na Casa Branca de Trump e, sim, o final da série, dissecado incansavelmente.

 

"Família Soprano" foi concebido originalmente como um filme, certo?

Sim. Meu plano era escalar Robert de Niro para o papel de, bem, o personagem ainda não tinha nome, e Anne Bancroft como sua mãe. Mas isso aconteceu no momento em que eu estava assinando com uma nova agência, e eles me disseram que comédias sobre a máfia não tinham futuro, e que eu devia esquecer a ideia. O fato é que eles estavam bem errados.
 
Você já falou sobre como sua mãe e seu relacionamento com ela influenciaram ao menos a porção inicial de "Família Soprano". Mas havia outros ingredientes?

Quando a série entrou no ar, eu acho que exagerei ao falar sobre minha infância para a imprensa. Disse que vivia deprimido, e que isso e aquilo, porque eu queria vender a ideia da depressão de Tony. Minha mãe era completamente louca, de verdade. Mas tive uma infância maravilhosa, de muitas maneiras. Minha família tomava conta de mim. Eu vivia circulando pelo complexo de apartamentos em que morávamos, explorando e descobrindo tudo. Tive bons amigos.
 
E que parte disso entrou na série?

Uma coisa que usei foi minha atração pela natureza. O urso. Os bosques.
 
Os patos.

Os patos. Porque mesmo em Clifton, Nova Jersey, havia muitos animais selvagens, então. Isso já não é verdade. Um filme que sempre menciono, que influenciou muito o que eu estava tentando fazer, foi "Marujos Improvisados", de Laurel e Hardy (o Gordo e o Magro).
 
Por que você queria fazer uma série sobre a máfia, especificamente?

Sou descendente de italianos, e queria ver os americanos de origem italiana retratados. Há pessoas que gostam de dizer que eu não retratei os italianos como são, e que nem todo os italianos são bandidos. E isso valia na série, também. A doutora Melfi (Lorraine Bracco) não era da máfia. Outras pessoas com quem os personagens interagiam tampouco. Mas os principais personagens eram.
 
De que forma James Gandolfini formulou o personagem de Tony de maneiras que você talvez não tivesse antecipado?

No primeiro dia em que estávamos gravando, havia uma cena em que Christopher dizia a Tony que ia escrever um roteiro de cinema e ir embora para Hollywood. No diálogo que escrevi, Tony comentava: "Você tá doido?", e lhe dava um tapinha amistoso. Foi essa a imagem que eu imaginei.

Na hora de gravar, Jim o ergueu da cadeira, o sacudiu pelo colarinho, e começou a gritar "você está louco, [palavrão]?" E eu pensei: Esse é Tony Soprano. Ele parecia um verdadeiro gângster.
 
Você trabalhou em redes de TV aberta por décadas, em séries como "Arquivo Confidencial" e "Northern Exposure". Que convenções de TV você estava tentando romper, exatamente, com "Família Soprano"?

Todas elas, na verdade. Eu odiava comerciais e a maneira pela qual eles interrompiam tudo. Queria desacelerar o ritmo de um episódio ou acelerá-lo, da forma que desejássemos. O diálogo. Queria criar personagens que parecessem pessoas reais e se comportassem como as pessoas se comportam, o que eu não via nas redes de TV.

Como você agiu para conseguir isso?

Eu costumava repetir sempre que as primeiras dez ideias que você tiver devem ser jogadas fora. Era isso que costumávamos fazer, continuar martelando até que tivéssemos algo que nunca tivesse sido visto, ou que fosse impossível prever.
 
A série se tornou famosa por resoluções surpreendentes —por exemplo, quando Janice Soprano (Aida Turturro) matou Richie Aprile (David Provall) na temporada dois— e por coisas deixadas sem solução, como o infame "russo no bosque", do episódio "Pine Barrens". O que esse tipo de virada propiciava à história?

O avô da minha mulher era da França e lutou na Primeira Guerra Mundial —foi ferido em um ataque por gás venenoso na guerra. Ele teve dois filhos e, quando a guerra acabou, decidiu ir para os Estados Unidos porque não os queria envolvidos em guerras, não os queria no Exército. E os dois terminaram indo para o Exército nos Estados Unidos.

Eu pensava sempre nisso, que a vida é exatamente assim. Você se prepara sem parar para encarar as coisas. "Vou cuidar de tudo, vou evitar isso e aquilo." E aí algo vem do outro lado, e você nem vê. Isso é algo que dura a vida toda, e era isso que estávamos tentando fazer.
 
Houve um momento ou episódio inicial em que você sentiu ter descoberto alguma coisa?

Acho que "College" foi um momento importante para mim, o quinto episódio da primeira temporada. Tony leva a filha em uma visita a uma universidade [e mata brutalmente um mafioso que havia denunciado companheiros de crime à polícia, ao longo do caminho]. Alguns dos melhores episódios eram aqueles em que ele estava fora de seu elemento, em que alguém estava fora de seu elemento. "Pine Barrens". Eram como pequenos filmes. Que era o que eu sempre estava tentando fazer. Um pequeno filme a cada semana. Eu não gostava muito da ideia de fazer histórias continuadas.
 
Por que não?

Não sei. Eu pensava em "Dallas" —não queria fazer aquilo. Mas me deixei convencer a fazê-las, e isso provou ser uma ótima ideia.
 
Há alguns episódios que você gostaria de refazer?

O episódio em que eles vão à Itália. Não estávamos em nosso elemento. Não sabíamos de fato o que estávamos dizendo. Por isso, não gosto muito dele.
 
E quanto ao episódio muito criticado sobre os manifestantes e a parada do Dia de Colombo?

Não me arrependo, porque eu tinha tanto fel acumulado dentro de mim que nem me incomodava que as pessoas gostassem ou não. Sei que todo mundo odeia esse episódio.
 
Como descendente de italianos, você ficava magoado com as críticas à maneira pela qual a série descrevia os americanos de origem italiana?

Não, não ficava. Ficava irritado, e é só. Em "Família Soprano", havia muitas coisas que não era costume ver em outras produções que mostram a máfia, e me irritava que pessoas não vissem isso.

Íamos filmar "Pine Barrens" na South Mountain Reservation, em Nova Jersey, e um funcionário do condado de Essex nos expulsou de lá porque manchávamos o bom nome dos italianos. Depois ele terminou na prisão.
 
Você sabia desde o começo que o programa incorporaria elementos mais impressionistas, como as sequências oníricas? Coisas como o sonho de Big Pussy sobre o peixe, ou a história em realidade alternativa sobre Kevin Finnerty, na temporada seis?

Muita gente odiava essas sequências oníricas. Havia pessoas que queriam só uma série sobre a máfia, e o lema delas era "menos papo, mais porrada". E quando eu lia esse tipo de coisa, só me estimulava a colocar mais conversa nos episódios. O tema da série era a psiquiatria, e sonhos são parte da psiquiatria.
 
Edie Falco brinca sobre trazer a série de volta, com Carmela na chefia da família. Alguém já tentou seriamente convencê-lo a ressuscitar o programa?

Não. As pessoas me procuram sugerindo outras séries sobre a máfia, mas não "Família Soprano".
 
Mesmo? Eu imaginaria que a Netflix já deve ter parado o carro-forte na sua porta e perguntado: "Quanto dinheiro vamos ter de oferecer?"

Não. Nunca aconteceu.
 
O que seria preciso para que acontecesse?

Trazer a série de volta? Eu não faria. No final, dissemos tudo que tínhamos a dizer. Eu não tinha mais o que dizer.
 
Lembro-me de entrevistas naquela época em que Gandolfini também parecia ter chegado ao seu limite.

Sim, ele não aguentava mais. Não me aguentava mais.
 
Mais tarde ele estrelou em "Not Fade Away". Vocês se davam bem, em geral?

Sim, nos dávamos bem, mas no final de "Família Soprano" ele estava cansado da série e estava cansado de mim. E eu estava cansado de suas chatices. É tudo.

Ele costumava me chamar de vampiro. Depois começou a chamar todos os roteiristas de vampiros, porque aproveitávamos coisas da vida real dos atores para a série. Tony Sirico tem fobia a germes, e assim atribuímos o mesmo traço ao seu personagem, Paulie.
 
Falamos sobre sonhos, antes. Você alguma vez sonha com "Família Soprano"?

Não, sonho com Jim Gandolfini. Não lembro bem desses sonhos, e nunca os analisei. Talvez ele seja Tony Soprano em alguns deles. Em muitos, está furioso.
 
O que você acha que "Família Soprano" fez e a televisão ainda não tinha feito?

[Longa pausa] Creio que "Família Soprano" mostrou os seres humanos como humanos muito mais do que qualquer coisa precedente. Os personagens das séries de redes abertas de TV são seres humanos, claro, mas acho que mais gente veio a sentir que "Tony Soprano é mais parecido comigo do que aquele médico, ou policial, ou juiz".
 
Desde "Família Soprano", a televisão se tornou talvez a mídia mais fértil criativamente, e mais ambiciosa, na cultura pop. Você fica feliz por ter sido um dos arquitetos disso?

Se é o que você diz. Mas sim. Fico feliz por ter tido algum efeito sobre a maneira pela qual as coisas mudaram. Há uma canção de Elvis Costello na qual ele diz que "quero morder a mão que me alimenta, quero tanto mordê-la". Foi assim que sempre me senti trabalhando nas redes de TV —e acho que consegui fazê-lo.
 
Que influências de "Família Soprano" você vê ao assistir televisão?

Não vejo muitas séries na TV. Infelizmente passo meu tempo vendo a CNN, Fox e MSNBC, o que me deixa deprimido e zangado.
 
Eu tinha esquecido, até que revi a cena recentemente, que no episódio final A.J. fala sobre querer trabalhar como piloto de helicóptero para Trump. Se isso tivesse funcionado, ele talvez fosse parte do governo hoje.

Ele poderia ser o novo chefe da Casa Civil. Seria amigão de Stephen Miller, estou certo disso.
 
O que você acha que Tony teria sentido ao ver Trump se tornando presidente.

Ele acharia que o cara só diz [palavrão]. Mas saber se ele o veria como um bom presidente ou não... eu não sei se Tony pensaria muito nessa questão, não importa quem estivesse no cargo. Mas sei que Tony teria visto Trump como café pequeno, em termos de suas mentiras e da maneira como se apresenta.
 
É claro que o episódio final costuma ser lembrado pelo corte para a tela preta, e todos os comentários que se seguiram. Você teria feito algo de outro jeito, se soubesse que teria de responder a perguntas sobre isso durante anos?

​Acho que não. Mas é impossível não ficar surpreso —e mais que surpreso— com a reação. Foi uma sensação agradável, que as pessoas falassem a respeito, que o episódio tenha causado uma impressão nas pessoas. Mas muita gente ficou zangada. Às vezes nem acredito que a série fosse tão importante para as pessoas.
 
Com o 20º aniversário se aproximando, você está pronto para uma nova rodada de "mas Tony morreu ou não?"

Preciso dizer que isso só me entedia. E penso também que a série teve 86 episódios  —e as pessoas estão obcecadas com isso? Não há outro assunto para discutir?
 
Em 2015, você deu uma entrevista à Directors Guild of America na qual dissecava a sequência final detalhadamente. Foi uma tentativa de encerrar o assunto?

Pode ter sido. Não recordo meus motivos. Eu estava tentando oferecer um contexto.
 
É frustrante que, mesmo depois disso, muita gente não se disponha a aceitar sua palavra?

É frustrante. Faz com que eu diga palavrões. Mas não surpreende, sabe? Não tenho estatísticas que o provem, mas acho que com o passar do tempo [o final] se tornou mais aceito.
 
Para mim, o ponto não é que Tony tenha ou não tenha sido morto. A incerteza é o ponto, e a maneira pela qual a tensão louca da cena nos torna conscientes da passagem do tempo e de como nossas escolhas determinam o pouquinho de vida que temos. A maioria das pessoas não controla quando ou como morre, mas as escolhas são nossas. Estou completamente errado?

Não, de maneira alguma.
 
Acho que há alguma esperança a extrair disso.

Você é a primeira pessoa que diz isso. Há alguma esperança a extrair. O nome da canção [que toca na cena] é "Don't Stop Believing", pelo amor de Deus. O que mais se pode dizer?
 
Há uma resposta correta para a pergunta de se Tony está vivo ou morto?

Creio que não. Creio que não.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.