Novo filme de Barry Jenkins leva às telas 'melancolia negra' da obra de James Baldwin

'Se a Rua Beale Falasse' mostra tristeza sem amargura que permeia cotidiano dos personagens

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Regina King, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante, em 'Se a Rua Beale Falasse', de Barry Jenkins
Regina King, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante, em 'Se a Rua Beale Falasse', de Barry Jenkins - Divulgação
São Paulo

Em seu novo filme, “Se a Rua Beale Falasse”, o diretor Barry Jenkins prova que seu cinema é, estética e narrativamente, permeado pela melancolia. Mas o longa não trata exatamente do sentimento como o conhecemos, associado à tristeza e à depressão, e sim de uma emoção com poder transformador, que possibilita a reflexão. Foi assim que participantes de debate sobre o filme definiram a obra, baseada no livro do escritor James Baldwin, e que estreia quinta-feira (7) nos cinemas.

De acordo com o sociólogo Márcio de Macedo, professor da FGV, esse tipo de melancolia é próprio da cultura negra, semelhante ao misto de tristeza e prazer que se sente ao escutar ritmos como blues e jazz. 

Macedo, que é negro e escreveu o posfácio da nova edição do livro que inspirou o longa, disse que o sentimento trespassa tanto a obra de Baldwin, um dos maiores expoentes da literatura afro-americana, quanto o cinema de Jenkins.

O debate aconteceu após sessão especial do filme na segunda-feira (4). Promovido pela Folha, o evento gratuito aconteceu no Espaço Itaú de Cinema Augusta. A mediação da conversa foi feita pelo editor do Guia Folha, Sandro Macedo.

No longa indicado ao Oscar, o jovem negro Fonny é preso de forma injusta após ser acusado de estuprar uma mulher latina na Nova York da década de 1970. A narrativa acompanha a luta de sua namorada Tish, que está grávida, e da família de ambos para soltá-lo, ao mesmo tempo em que explora o relacionamento e as dificuldades enfrentadas pelo casal.

Para a escritora e ativista negra Cidinha da Silva, que integrou o debate, a melancolia da história não desperta amargura nos personagens, e sim uma vontade de renascer. Essa seria uma realidade familiar para pessoas negras, que, segundo ela, têm se mostrado capazes de refazer suas vidas mesmo depois das muitas dificuldades que enfrentam.

Com esse foco no cotidiano e relacionamentos dos personagens, Jenkins, que também dirigiu o vencedor do Oscar “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016), se firma como parte de uma nova onda de diretores que buscam dar destaque à humanização dos negros em suas obras, disse Silva.

“Muitas vezes as pessoas vão assistir a esses filmes esperando o momento em que o racismo vai aparecer. E ele de fato aparece, porque é indissociável da situação, mas o maior destaque é a humanidade negra, conceitos como respeito, solidariedade e família, vividos mesmo em condições adversas. É uma produção que destaca o óbvio, que essas pessoas são humanas”, afirmou.

Para a escritora, essa corrente cinematográfica combate uma das faces mais danosas do racismo, que nega a possibilidade de os negros, como seres humanos, serem múltiplos e terem ações contraditórias.
Como exemplo, Silva relembrou um dos personagens do filme, Frank Hunt, pai do protagonista. “É um pai amoroso, referência de humanidade para o filho, mas que em determinado momento agride a esposa sem pestanejar.”

Em outro ponto da narrativa, os pais dos protagonistas se unem para aplicar pequenos golpes, com o intuito de juntar dinheiro para pagar a defesa de Fonny. O cenário reflete uma tentativa de incluir na obra figuras reais, sem idealização ou mártires, disse. 

Esses e outros momentos abrem espaço para uma reflexão sobre o papel da masculinidade e do machismo na população negra. Segundo Macedo, são questões que se manifestam de forma diferente entre os homens negros, limitados pelo racismo.

“É uma masculinidade subalterna, que se perde, por exemplo, quando um dos personagens conta os abusos sofridos e o medo que sentiu na prisão. É um conceito que se achata em relação à masculinidade do grupo hegemônico”, disse.

Apesar de considerar que a arte feita por e para negros não precisa ser hiper-realista, podendo se render à poesia, Silva afirmou que as injustiças mostradas no filme podem ser conectadas a um recrudescimento das questões raciais na sociedade da década de 1970, após anos de lutas pelos direitos civis dos negros nos EUA.

“Hoje no Brasil estamos vivendo um momento semelhante. A nova proposta anticrime do ministro Sergio Moro, que autoriza policiais a atirarem sem hesitar, deve aumentar os números de encarceramentos e mortes da população negra no Brasil, estendendo a opressão a outros grupos minoritários, o que deve afetar as novas gerações”, afirmou.

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