Peças discutem o afeto, a empatia e o conceito de família no Brasil atual

Embebidos no contexto de um país polarizado, espetáculos como "A Ponte" se debruçam sobre o drama familiar

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São Paulo

​"Marion Bridge”, espetáculo do canadense Daniel MacIvor, abre com uma das personagens, Agnes, contando um sonho recorrente. 

Ela está no mar e tudo parece calmo. Mas logo o clima muda, e ela começa a se afogar. De longe, avista uma família fazendo piquenique na areia e acena em sinal de socorro. Mãe, pai, filhos, todos acenam de volta, mas não como ajuda —fazem apenas um gesto educado, com calma e um sorriso no rosto. Então retornam a seus afazeres e deixam Agnes em sua agonia.

O sonho resume a angústia da personagem e de suas irmãs, que, após um longo tempo sem se verem, têm que se reencontrar para lidar com a morte iminente da mãe. 

“E elas voltam a ser a irmã mais velha, a do meio, a mais nova. Cada uma reencontra os seus monstros e volta a viver todos os dramas da família”, comenta a atriz Bel Kowarick, que atua ao lado de Débora Lamm e Maria Flor na primeira montagem brasileira do texto, intitulada “A Ponte”.

O drama familiar é um tema recorrente na dramaturgia anglo-saxã contemporânea, tipo de produção que vem ganhando força por aqui. No contexto de um país polarizado, que se divide entre a disseminação de ideias liberais e uma ascensão do conservadorismo, montagens recentes partem desses textos para discutir o afeto, a empatia e o conceito de família no Brasil de hoje.

“O Natal passado foi o mais temido de todos os tempos”, brinca Lamm, lembrando das divergências políticas que deram a tônica de festas familiares de fim de ano. “Como você faz para administrar pensamentos tão diferentes?”

“A gente está vivendo uma coisa muito complexa, parece que as pessoas soltaram toda a sua raiva”, diz Carolina Mânica, que idealizou uma montagem de “Três Mudanças”, do americano Nicky Silver, dirigida por Mário Bortolotto.

Questionamento sobre as estruturas familiares, a peça retrata um casal bem-sucedido, Laurel (Mânica) e Nathan (Bruno Guida), que tem as fragilidades expostas com a chegada de Hal (Nilton Bicudo), irmão mais velho de Nathan.

“As pessoas querem uma família perfeita, um padrão de comercial de margarina. Mas a gente já viveu muita coisa para se conscientizar de que essa instituição também é falha”, afirma Mânica.

“É interessante encenar hoje a ruína de uma instituição tão cara como a família. Hoje, temos novas famílias, o avanço do casamento gay. Mas essas conquistas vêm sendo ameaçadas por um conservadorismo. Como se isso prejudicasse a sociedade, a família”, diz Guilherme Weber, que dirige Eliane Giardini e Antônio Gonzales em “Peça do Casamento”, do americano Edward Albee.

Texto menos conhecido do dramaturgo (autor de clássicos como “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?”), a peça fala do divórcio de um casal, junto há 30 anos. É um relacionamento tido como padrão, heterossexual e branco, mas retratado por um olhar irônico de Albee, que nunca escondeu sua homossexualidade.

Para tanto, o dramaturgo faz do espetáculo uma sátira do drama familiar e uma espécie de jogo cênico —ideia embutida no título original, “Marriage Play”, que pode significar tanto “jogo do casamento” quanto “peça do casamento”.

Os personagens são mesmo como atores encenando esse drama, estão conscientes da teatralização da história. Durante uma briga, por exemplo, o marido diz à mulher que precisa parar a cena, sair do palco e repetir sua entrada.

É um tipo de recurso metalinguístico que guia ainda outras montagens. No caso de “A Ponte”, a trama se passa toda numa cozinha, mas há referências a outros cômodos da casa (como o quarto em que se encontra a mãe moribunda) e ambientes externos. 

Na encenação brasileira, contudo, todos os ruídos de fora são feitos não por recursos de som, mas por meio de legendas projetadas sobre o palco. Até quando não há atores em cena o público acompanha tudo por escrito.

Uma forma de aludir à criação do texto de MacIvor, que originalmente pretendia fazer um roteiro de filme, e também de dar mais atenção a pequenos detalhes. “Para mim, esses micro acontecimentos são muito importantes”, afirma o diretor Adriano Guimarães. “A poesia da peça está nessa banalidade do cotidiano.”

Já na montagem nacional de “As Crianças”, peça da inglesa Lucy Kirkwood, o diretor Rodrigo Portella criou um palco limpo, com poucos elementos, e as rubricas do texto —indicações que o autor dá para ações dos personagens ou  mudanças de cenário— são ditas pelos atores em cena. 

Assim, entre um diálogo e outro, um ator olha para plateia e diz: fulano sai de cena, beltrano mistura furiosamente uma salada. “Fiquei muito impressionado com a qualidade das rubricas, parece literatura”, diz Portella, que vê semelhanças entre a obra de Kirkwood e do conterrâneo Harold Pinter. “Os textos dela tratam das relações humanas, das questões banais e universais, e têm por trás uma grande questão humanitária.”

“As Crianças” não é exatamente um drama familiar, porém discute muito o afeto e a redenção. Trata de um casal de físicos aposentados (Analu Prestes e Mario Borges) que vive isolado numa região assolada por um acidente nuclear. Os dois recebem a visita de uma antiga colega (Stela Freitas), que propõe a eles uma missão um tanto difícil para ajudar a região afetada.

Por fim, é justamente da falta de empatia que fala a autora. “Nesse mundo de hoje, fomos nos individualizando”, afirma Portella. “E é engraçado como as coisas aparecem por contraste, como esse isolamento acaba nos provocando um olhar para as relações.”

A Ponte
CCBB-SP, r. Álvares Penteado, 112. Sex., sáb. e seg., às 20h, dom., às 18h. Sessões extras: 21 e 28/2 e 7/3, às 20h. Até 25/3. Ingr.: R$ 30. 12 anos

As Crianças
Teatro Poeira, r. São João Batista, 104, Rio. Qui. a sáb., às 21h, dom., às 19h. Até 31/3. Ingr.: R$ 60. 14 anos

Peça do Casamento
Sesc Santana, av. Luiz Dumont Villares, 579. Sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h. Até 17/3. Ingr.: R$ 12 a R$ 40. 16 anos

Três Mudanças
Sesc Ipiranga, r. Bom Pastor, 822. Sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h. Até 10/3. Ingr.: R$ 9 a R$ 30. 16 anos

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