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Filmes

Fantasia e sordidez se unem no documentário 'Cine Marrocos'

Exibido no É Tudo Verdade, obra retrata ocupantes de cinema abandonado que encenam trechos de filmes

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Cine Marrocos

  • Quando Nesta sexta (12), às 13h, no Sesc 24 de Maio, em São Paulo; e às 15h, na Estação Net Botafogo, no Rio de Janeiro
  • Classificação 14 anos
  • Produção Brasil, 2018
  • Direção Ricardo Calil

Em cada filme de ficção existe quase sempre um aspecto de documentário. E em todo documentário há um lado de ficção. Eduardo Coutinho explorou esse aspecto em "Jogo de Cena". Ricardo Calil, autor de "Cine Marrocos", pretende seguir essa exploração.

O Cine Marrocos oferece todas as oportunidades para isso. Inaugurado em 1952, o local foi um espantoso palácio cinematográfico que viveu a glória e mais tarde a decadência do centro e dos cinemas de rua, antes de se transformar em uma ruína, junto ao edifício que o abrigava.

Devidamente ocupado por pessoas sem moradia, ele se torna lugar ideal para um documentário —trata-se, afinal, da ocupação de um cinema. E não qualquer um, mas um lugar onde o cineasta se propõe a mostrar filmes aos ocupantes. Mais: a levá-los a assumir o papel de atores, retomando cenas de alguns desses filmes.

Temos, então, atores-ocupantes representando cenas de alguns filmes. E o fazem com uma convicção que por vezes confunde: são mesmo atores tomando parte de um filme ou são ocupantes fingindo ser atores?

Depois podemos até nos perguntar, diante desses jogos de cena: qual é a diferença? Coutinho já havia demonstrado que ser e representar são, no fundo, uma coisa só. Cada um de nós é ator de si mesmo.

É o caso do ocupante que se diz iluminador teatral. Após cair em depressão, teria deixado de pagar aluguel; acabou morador de rua. Ok. Mas ele mesmo dirá, citando Jeremias, o profeta, que maldito é o homem que confia no homem.

Em outras palavras: por que deveríamos confiar no que ele diz?

Estamos, afinal, no país que adotou a palavra "narrativa" com o carinho todo particular de quem sabe o quanto ela serve para omitir a verdade. Ora, são inúmeras as tramas que se desenvolvem no interior desse cinema. Ficcionais ou reais, não importa. São, por vezes, duvidosamente verdadeiras. Mas existem.

Por exemplo: ali está, segundo o líder, uma ocupação exemplar, na qual existe limpeza, os elevadores funcionam, os ocupantes pagam até aluguel. Talvez uma ocupação boa demais para ser verdade.

A polícia tem outra, digamos, narrativa: o local é ponto encontro de traficantes do PCC. O líder do espaço, aliás, é preso depois no Nordeste com uma pequena fortuna nas mãos. Onde está a verdade?

Assim, o cinema, a arte de mostrar o mundo tal e qual, enreda-se no mundo e arrasta junto a sua complexidade. Suas "narrativas". Tão mais terrivelmente complexas neste tempo em que é possível, por exemplo, incrustar, na cena final de "Crepúsculo dos Deuses", a representação da mesma cena por ocupantes do antigo Marrocos.

Nela, no lugar de Gloria Swanson, quem desce a escadaria imponente é uma das ocupantes. Em vez de Von Stroheim, quem a observa, consternado, é o diretor Ricardo Calil. Mas quem assiste à cena, de cima, são os personagens do filme de Billy Wilder, inclusive Hedda Hopper (a implacável colunista de Hollywood naqueles dias de 1950).

Na ocupação existe mito (a grandeza do Marrocos), passado, glória e deterioração. Existe fantasia e sordidez, representação e realidade, poesia e jogo de espelhos.

É através dessa selva narrativa que o filme afinal reencontrará seus personagens no papel que desde o início lhes coube: o de ocupantes que, expulsos do cinema-moradia, voltam a ser apenas ocupantes expulsos, destituídos de teto e de sonhos. Voltam ao papel de sem-teto.

É enfrentando todos esses obstáculos que o cinema encontra a passagem para chegar ao seu fim: mostrar a verdade que está no fundo das coisas. Ao sair do cinema, arrastando seus pertences, esses pobres ex-moradores expõem bem a ruína do Cine Marrocos, que coincide bem tristemente com a ruína de uma nação.

Certamente é atroz. Talvez seja uma obra-prima.

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