Militantes do país reivindicam identidade negra de Machado de Assis

Nos 180 anos do escritor, debate sobre seu embranquecimento pela história oficial continua presente

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São Paulo

Foi no morro do Livramento, no centro do Rio de Janeiro, que tudo começou. Ali, há exatos 180 anos, nascia um menino pobre, filho de um pintor negro e uma lavadeira branca. Órfão de mãe aos nove anos e epiléptico, seu nome era Joaquim Maria Machado de Assis.

Imagem colorizada da campanha Machado de Assis Real, criada pela Faculdade Zumbi dos Palmares  - Divulgação

Era um rumo improvável para a história, mas o rapaz virou o maior escritor brasileiro, celebrado por romances como “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. E não foi um caso de glória após a morte. Ela veio enquanto ele estava vivo.

No seu aniversário de nascimento, comemorado nesta sexta-feira (21), um debate que existe há décadas —mas que nunca foi encerrado— continua vivo e ganha novos capítulos. Machado de Assis, dizem especialistas e militantes do movimento negro, foi embranquecido pela história oficial.

Na maior parte das fotografias do escritor que chegaram até nós, Machado de Assis parece branco. Não só na cor, mas com truques de luz que afinariam seus traços para não parecerem africanos.

De fato, há só duas fotografias mais famosas em que seu tom de pele parece mais escuro —uma tirada de 1905 e outra de uma revista argentina, descoberta só no ano passado.

No fim dos anos 1950, o pesquisador francês Jean-Michel Massa já revelara imagens encontradas em Portugal que sugeririam que o autor era negro —ou mulato, a depender da posição política que se assuma.

Apesar de esse papo ser antigo, nada impediu que, em uma propaganda da Caixa Econômica Federal, em 2011, o escritor aparecesse de bengala, pince-nez —e branco.

Nos seus 180 anos, acaba de chegar às ruas a campanha Machado de Assis Real, criada pela Faculdade Zumbi dos Palmares em parceria com uma agência de publicidade. A campanha colorizou uma das imagens em que o autor parece mais embranquecido, de 1893, a fim de retratá-lo como negro.

Em um site, é possível imprimir a nova foto para colá-la nas orelhas de livros em que o escritor apareça retratado de outra forma. 

“A campanha traz a verdade e a possibilidade, especialmente para os negros, de celebrar um gênio a partir de sua filiação comunitária. E, para o Brasil, mostra como barreiras artificiais do passado não foram o suficiente para barrar a genialidade”, diz José Vicente, reitor da Zumbi dos Palmares.

A foto não é só um resgate visual, mas um resgate de reputação. Embora reconhecido por méritos literários, durante muito tempo Machado foi criticado por, em tese, não ter tratado da escravidão e do racismo em sua obra —de fato, não há um protagonista negro em seus grandes romances.

Além disso, ele chegou a ser acusado de tentar embranquecer a si mesmo. Na sua certidão de óbito, aliás, ele é classificado como branco. Machado seria assim o antípoda de Lima Barreto, o único a ostentar sua ascendência africana. Mas há estudos mais recentes que contestam essa visão.

“Criaram teorias equivocadas. O Sidney Chalhoub [pesquisador, autor do livro ‘Machado de Assis Historiador’] diz que aquela teoria de que Machado pediu a Joaquim Nabuco para ser enterrado como branco não é verdade. E, como funcionário público, ele sistematicamente deu ganho de causa a escravizados”, diz a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz.

Que Machado não era branco é ponto pacífico. Resta, contudo, um ponto de controvérsia. O antropólogo Antonio Risério, por exemplo, que acumula embates com o movimento negro, diz que o autor era mulato —palavra hoje maldita na militância negra.

“Há um movimento ideológico feito pelo ativismo que se autoproclama negro. Eles caíram na conversa fiada de Gilberto Freyre, que disse que a mestiçagem foi algo dos senhores currando as escravas. A mestiçagem foi [um fenômeno] popular, com negros, negros libertos, índios e brancos pobres”, afirma ele.

“Publicamente Machado nunca teve uma posição tipo Luiz Gama [contra a escravidão]. Ele era um menino pobre e mulato. Ele evita a pobreza. Acha que os pobres não são dignos da sua prosa. Ele é o romancista da classe dominante brasileira, na passagem do século 19 para o 20. E isso não diminui os méritos da sua obra.”

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