Cantores trans reeducam suas vozes para se firmarem no mundo da ópera

Nova onda de artistas dos EUA passam por transição de gênero e continuam sua carreira no canto lírico

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A artista trans Breanna Sinclairé

A artista trans Breanna Sinclairé NYT

Michael Cooper
Austin (Texas) | The New York Times

Segurando seu copo de uísque em uma das mãos e o chapéu Stetson na outra, o herói da ópera —o valente cocheiro de uma diligência— oferece conselhos a uma garçonete infeliz, em uma voz clara de tenor.

"Você pode ser tudo que quiser", canta o tenor, Holden Madagame. 

E ele sabe do que está falando. Madagame, 28, é parte de uma nova onda de cantores de ópera transgênero.

Treinado como meio-soprano, ele colocou sua carreira musical em risco ao fazer sua transição, anos atrás, e começar a usar testosterona, que torna sua voz mais grave e a modifica —uma voz que ele passou anos treinando para as sutilezas da ópera, um campo no qual o sucesso é medido em gradações muito delicadas.

"Alguns amigos cantores me disseram que eu estava arruinando minha carreira, minha vida; a voz é tudo", ele recordou recentemente. "E eu pensei comigo mesmo que não, não é. Minha escolha seria antes de tudo desfrutar da minha vida, e tentar manter o canto se pudesse. Mas não sabia se seria capaz disso."

Ele se provou capaz. Agora, é um dos diversos cantores transgênero que começam a deixar sua marca no mundo da ópera, sempre tradicionalista. Alguns, como ele, encontraram vozes novas, com a ajuda de hormônios ou de programas de retreinamento.

Outros mantiveram as vozes sobre as quais construíram suas carreiras —mesmo que isso signifique continuar a cantar papéis no gênero que deixaram para trás. Agora, alguns desses cantores começam a conquistar papéis de maior destaque e a derrubar os preconceitos sobre voz e gênero.

A ópera mesma começa a mudar: a ópera recente mais produzida nas últimas temporadas da América do Norte é "As One", uma história que mostra um personagem transgênero encontrando seu lugar no mundo.

Isso acontece em um momento no qual os direitos dos transgênero estão sendo discutidos pelas autoridades esportivas, legislativos estaduais e nas forças armadas, que receberam uma ordem do presidente Trump para proibir o serviço dos militares transgênero.

Enquanto Madagame cantava em Austin, no estado do Texas, no segundo trimestre, Lucia Lucas, uma mulher transgênero, ensaiava o papel-título da ópera "Don Giovanni", de Mozart, com a Tulsa Opera, em Oklahoma. Lucas manteve seu poderoso barítono grave depois da transição; o estrógeno não torna a voz mais aguda, enquanto a testosterona a torna mais grave.

"Seria ótimo se eu pudesse tomar estrógeno, e acordasse pronta para cantar Brünnhilde", ela disse. "Mas não funciona assim".

De certa forma, a nova geração de cantores transgênero adiciona uma nova variação a um tradição muito antiga: a ópera praticou a fluidez de gênero desde que surgiu.

As primeiras óperas tinham papéis de meninos cantados por mulheres sopranos, e papéis tanto masculinos quanto femininos costumavam ser cantados por "castrati" —homens castrados antes da puberdade para preservar suas vozes agudas.

Quando essa prática desapareceu, os papéis masculinos com voz aguda que os "castrati" desempenhavam em muitos caso foram assumidos por mulheres. E muitos grande compositores, entre os quais Mozart e Strauss, escreveram "papéis para calças", ou seja, papéis masculinos concebidos para interpretação por mulheres.

Um dos mais bem sucedidos entre os cantores europeus de ópera transgênero é Adrian Angelico, 35, um meio-soprano norueguês que manteve a voz depois de sua transição em 2016, e se tornou um dos poucos homens cuja especialidade é cantar papéis masculinos originalmente compostos para mulheres.

Veja a história de quatro dos artistas que lideram essa nova onda.

De meio-soprano a tenor

No começo, a testosterona não parecia ser opção.

Madagame, que teve seu sexo designado como feminino ao nascer, se mudou para Berlim depois de se formar na Universidade de Michigan, onde estudou canto, mas as coisas não estavam caminhando de acordo com seus planos.

"Eu ficava tão deprimido que não conseguia cantar", ele recorda. "E sabia que isso se relacionava a gênero, mas não queria admitir."

Àquela altura, ele tinha dedicado anos de trabalho árduo a se tornar um meio-soprano. "Francamente, eu não tinha qualquer experiência quanto ao que aconteceria", disse Stephen West, um dos professores de canto de Madagame em Michigan, que o recorda como um meio-soprano excepcional.

Cantores de ópera dependem de suas vozes não amplificadas como ganha-pão, e passam anos aperfeiçoando suas técnicas —por isso, tendem a encarar com cautela qualquer coisa que possa forçar ou danificar suas vozes. Mas Madagame estava se sentindo tão infeliz que decidiu tentar um salto ao desconhecido.

"Decidi que, se não estou cantando, e a única razão para eu não tomar testosterona é que desejo cantar, melhor tomar testosterona e pronto", ele disse.

Depois das primeiras injeções, ele recorda, o timbre de sua voz —seu colorido e ressonância específicos— começou a mudar. "No começo eu não estava passando por uma mudança de registro para o grave, mas os sobretons estavam caindo."

Depois veio um período de inquietação em sua voz. "Eu não tinha voz como cantor, meu alcance era de uma oitava, algo assim", ele recorda. "Foi aterrorizante. Fiquei com medo de a voz permanecer daquele jeito."

Madagame se sentia melhor emocionalmente, mas continuava preocupado por ter dificuldades para cantar, depois de alguns meses. Ele começou a imaginar se seria capaz de voltar ao trabalho.

"Eu não fazia ideia. E ninguém mais sabia", ele se recorda de ter pensado. "Ou seja: aterrorizante."

Ele voltou a algumas das árias italianas fáceis que havia aprendido na adolescência —não muito difíceis, não muito agudas. Mas elas subitamente já não pareciam tão fáceis.

"São árias que ensinam muita coisa quando você as canta", ele disse. "Eu pensava inicialmente que minha voz teria de ser retreinada para aquelas peças. Mas no começo não conseguia cantar nem as mais fáceis".

Stephanie Weiss, professora particular de canto, o instruiu enquanto sua voz se assentava e o ajudou a superar alguns momentos iniciais difíceis, quando ele perdia a voz. Mas Madagame passou por um momento de superação enquanto trabalhava em uma ária de Mozart.

Estava enfrentando problemas, como acontece com muitos tenores jovens, para chegar às notas mais agudas, recorda Weiss, e por isso ela lhe ofereceu algumas dicas, entre as quais que vogais ele deveria segurar à medida que sua voz galgava os graus mais altos.

E ele sentiu que alguma coisa se encaixou. "Ele comentou que não achava que um dia conseguiria produzir aquele som", conta Weiss.

Ela acrescenta que o fato de que Madagame tivesse desenvolvido uma técnica sólida ajudou. "Agora", ela diz, "ele realmente encontrou sua voz, em todos os sentidos do termo".

Não demorou para que o cantor, que viva em Görlitz, uma cidade na fronteira entre a Alemanha e a Polônia, começasse a obter pequenos papéis com pequenas companhias de ópera da Alemanha e do Reino Unido. Ele foi aceito na Glyndebourne Academy, um programa de treinamento associado ao prestigioso Festival de Glyndebourne, na Inglaterra.

Também se tornou ativista, trabalhando para educar as pessoas sobre questões transgênero. O site dele inclui textos sobre "por que é rude perguntar a uma pessoa trans seu nome de nascimento", e uma lista de perguntas frequentes que inclui "perguntas que vocês não deveriam fazer mas vou responder de qualquer jeito", entre as quais que porções de sua anatomia ele mudou e que porções não mudou.

Ele sonha em cantar o papel de Lemsky, o poeta condenado em "Eugene Onegin", de Tchaicovsky, mas vem trabalhando principalmente em papéis menores para tenores, e não papéis principais. "Tenho 1,58 metro de altura", ele aponta —o que cria mais uma dificuldade de contratação.

Mas foi um papel principal que o levou a Austin, no Texas. Ele estrelou "Good Country", uma ópera do compositor Keith Alegretti e da libretista Cecelia Raker, baseada na história real de Charley Parkhurst, um cocheiro de diligência que vivia como homem mas sobre quem foi descoberto, depois de sua morte em 1879, que havia nascido mulher.

O papel foi composto para um cantor transgênero —e depois que Madagame foi escalado, os autores o modificaram tendo a voz dele em mente.

Mudando só uma coisinha

Ela entrou na sala de ensaio com roupa casual —top listrado, sapatos prateados de salto baixo, cabelo preso em um rabo de cavalo, um pouco de batom nos lábios— e começou a cantar um dos papéis mais toxicamente masculinos na história da ópera: o protagonista de "Don Giovanni", de Mozart.

Mozart escreveu uma série de papéis masculinos para serem cantados por mulheres. Don Giovanni não é um deles. Mas com seu poderoso barítono ecoando na sala, Lucas, 38, visivelmente se tornou o personagem, planejando suas novas seduções com prazer e um jeito ameaçador.

Os desempenhos dela em Tulsa valeram manchetes e foram a mais recente indicação de que a carreira de Lucas está mais que voltando aos trilhos, depois que ela a colocou em risco ao realizar a transição para mulher enquanto trabalhava como barítono em uma companhia de ópera em Karlsruhe, Alemanha.

"Foi sempre uma questão de imaginar quando minha carreira acabaria, para eu poder fazer a transição", ela recordou em uma recente entrevista em Nova York, dizendo que se sentia desconectada de seu gênero de nascença desde a infância vivida em Sacramento, Califórnia.

"Nunca imaginei que as duas coisas pudessem coexistir." Mas em 2013 ela decidiu que não adiaria mais a transição. Saiu do armário no baile anual da ópera de Karlruhe. Sua mulher, também cantora, usava um smoking, e Lucas um vestido de baile.

A companhia inicialmente a apoiou. "Era um bom estudo de caso: uma pessoa trans pode fazer carreira na ópera?", disse Lucas.

"Eu ficava imaginando se poderia ter uma carreira depois de mudar só uma coisinha. Uma coisa que nada tem a ver com o palco, algo pessoal. Porque vou continuar cantando como barítono e continuarei a interpretar homens nos palcos."

Já que os hormônios não alterariam sua voz, e que retreinar como contralto parecia pouco prático, ela continuou a ser barítono. Agora, a vasta maioria de seus papéis nos palcos são masculinos —um gênero com o qual ela se sentia desconfortável na vida. Mas ela disse que fez as pazes com isso.

"Vou e coloco uma barba", disse Lucas, apontando que está interpretando um personagem no palco. "É claramente um disfarce. Não significa voltar à vida anterior".

Quando ela passou por cirurgia para tornar seu rosto mais feminino, não permitiu que o médico mexesse em sua cavidade nasal, nariz ou pomo de adão.

"Por mais que eu deseje colocar minha transição acima de meus personagens", ela disse, "não quis deixar que ele mexesse com qualquer coisa que pudesse alterar minha voz".

Mas depois de algum tempo, seu contrato em Karlsruhe não foi renovado e ela deixou de ser chamada para audições de outras companhias, como costumava acontecer no passado. Isso só lhe deu mais determinação.

"Minha transição claramente era importante; mais importante que minha carreira", ela disse. "Mas assim que fiz a transição, basicamente tudo que sempre quis fazer, comecei a pensar em que amava minha carreira, e queria mantê-la. Decidi que lutaria pela minha carreira."

Novas oportunidades começaram a surgir. Ela teve chance de cantar Wotan, o rei dos deuses, em "As Valquírias" de Wagner. Na temporada que vem cantará com a English National Opera, uma companhia proeminente em Londres, fazendo um papel em "Orfeu no Submundo", de Offenbach.

O caminho dela para a ópera de Tulsa começou por um email de Tobias Picker, diretor artístico da companhia e compositor que escreveu óperas pra o Metropolitan Opera de Nova York e outras grande companhias.

Picker planejava compor uma ópera baseada em "A Garota Dinamarquesa", romance de David Ebershoff sobre uma das primeiras pessoas a tentar uma cirurgia de redesignação sexual, e estava em busca de um cantor transgênero para o projeto.

A ideia interessou a Lucas: ser a primeira protagonista em um novo trabalho de um compositor importante, no qual ela desempenharia um papel trans.

Mas quando Lucas foi a Nova York para a audição e cantou uma ária de "Otelo", de Verdi, Picker decidiu contratá-la para um papel muito mais cedo. "O Verdi foi espantoso a ponto de me levar a pensar que era hora de começar a escalar o elenco de 'Don Giovanni' —e a convidei", disse Picker.

O trabalho de Lucas foi um acontecimento. Quando um excerto do documentário que está sendo feito sobre ela foi exibido no Circle Cinema, uma sala de arte local, Lucas disse à audiência que muito de seu trabalho é mostrar às pessoas que ser trans não é muito importante.

"Estou tentando mostrar que ser trans não é a história", ela disse à audiência. "É como um antiativismo".

Optando por esperar antes do hormônios

"Carteira de identidade?", um personagem transgênero pergunta a um policial em "Stonewall", uma nova ópera sobre as ações policiais que ajudaram a criar o moderno movimento pelos direitos dos gays.

"Eu adoraria ter uma carteira de identidade", o personagem prossegue. "Mas as autoridades não permitem, pelo menos não um documento que me represente".

O diálogo pesou fundo para Liz Bouk, o meio-soprano que canta o papel. Bouk é um homem transgênero que só recentemente obteve uma licença de motorista que o descreve como homem.

"Fiquei me sentindo como um adolescente, ao receber o documento", ele disse. "Logo que a recebi, comprei uma picape e decidiu aprender a dirigir um carro com câmbio manual".

Mas a transição de Bouk, que surgiu no momento em que uma carreira pela qual ele batalhou muito estava começando a decolar, envolveu decisões difíceis.

Por mais que ele tenha querido usar hormônios, tem medo do que isso causaria à sua voz. Por isso decidiu rejeitá-los e continuar interpretando o que define como "mulheres ferozes" e papéis masculinos compostos para mulheres, nos palcos.

"Se estou cantando, se estou trabalhando", ele disse, "será que consigo suportar a disforia de estar no corpo errado, será que consigo aceitar tratamento de gênero incorreto no supermercado, ou por pessoas que não conheço?"

Ele mudou de nome, de Elizabeth Anna para Liz (os amigos o chamam de Mr. Liz), mas adiou uma nova mudança, talvez para John, para não confundir os diretores de elenco.

Usa os cabelos loiros compridos, mas nem tanto quanto no passado. E leva duas fotos formais às audições, uma que o mostra de terno e identificado como "Liz Bouk como ele mesmo" e a outra que o mostra de vestido, identificada como "foto para papéis femininos".

Desde que se declarou homem, disse Bouk, começou a se sentir mais em paz e sua voz melhorou. Ele vem desenvolvendo espetáculos sobre sua jornada. E continua a conseguir trabalhos —e resenhas positivas. Mas às vezes passa por momentos de ansiedade nos bastidores, ao se olhar no espelho.

"Seria ótimo", ele diz, "se meu lado de fora combinasse com o meu lado de dentro".

Mais e mais alto

"Por favor se levantem e tirem os chapéus para o hino nacional", disse o apresentador pouco antes da abertura de uma partida de beisebol do Oakland Athletics em 2015, "na interpretação de Breanna Sinclairé, do Conservatório de Música de San Francisco".

Sinclairé ergueu o microfone e se tornou possivelmente a primeira mulher transgênero a cantar o hino nacional em uma partida das grandes ligas esportivas americanas.

O ocorrido atraiu manchetes em todo o mundo e mostrou o quanto ela ascendeu desde seus dias mais sombrios, em que viveu nas ruas por algum tempo e sofreu ataques nas ruas de Nova York.

Sinclairé disse que sua primeira convicção foi a de que não se sentia confortável em seu corpo. O mesmo sentimento afetava seu canto.

"As pessoas me pressionavam a ser tenor, porque eu era alta", disse Sinclairé. "E eu respondia que não queria ser o maldito herói. Queria ser a donzela em perigo".

Depois de uma passagem infeliz por uma escola religiosa no Canadá, ela foi admitida no Instituto de Artes da Califórnia e trabalhou cortando grama até juntar dinheiro suficiente para a passagem de ônibus.

Ela decidiu pela transição em seu ano final na CalArts, e uma de suas professoras, Kate Conklin, a encorajou a tentar cantar o repertório meio-soprano.

"Estávamos trabalhando com o que já existia ali", disse Conklin, apontando que Sinclairé já tinha um bom agudo.

Depois veio San Francisco e seu conservatório. "Nunca tínhamos recebido para uma audição uma pessoa que estivesse em transição ", disse Ruby Pleasure, professora de Sinclairé na nova escola. "E era evidente que ela era um diamante bruto."

Na véspera de Ano-Novo de 2018, ela cantou com a Sinfônica de San Francisco. Sinclairé continuou a estudar e está se expandindo para papéis de soprano mais agudos. No ano que vem, voltará ao Canadá para cantar em uma ópera no Against the Grain Theater, em Toronto

"Vou para Toronto como quem realmente sou", ela disse. "E cantando como soprano."

Tradução de Paulo Migliacci

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