Tapa-sexo, maquiagem, peito nu e sucesso comercial: Secos & Molhados ganha biografia

Banda cantou músicas sobre liberdade para a família brasileira em plena ditadura militar

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O conjunto musical Secos & Molhados, em 1973: (da esq. p/ dir.), João Ricardo, Ney Matogrosso, Moracy do Val (empresário) e Gerson Conrad. Ary Brandi/Divulgação

São Paulo

A intensa aventura do Secos & Molhados entre 1972 e 1974 pode ser curta, mas o escritor, jornalista e cineasta Miguel de Almeida encontrou nela uma maneira de escrever sobre um período de ebulição cultural, política e comportamental. Tudo está em “Primavera nos Dentes - A História do Secos & Molhados”.

A ideia da biografia veio há três anos, em conversas com o Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha. “Sugeri porque, em primeiro lugar, não tinha nada publicado sobre o grupo, o que é um absurdo. E, depois, porque sabia que teria elementos para uma boa narrativa”, conta o autor.

O Secos & Molhados foi criado pelo músico português João Ricardo, radicado no Brasil, com uma primeira formação sem repercussão. O rumo certo veio como um trio, em 1972, com João, seu amigo de adolescência Gerson Conrad e Ney Matogrosso, hippie com pretensões a ator indicado por uma amiga, a cantora Luhli.

 

O primeiro disco, de agosto de 1973, foi turbinado pela aparição no “Fantástico”, recém-estreado na 
Globo, com a figura andrógina e a voz peculiar de Ney fazendo estardalhaço.

A contundência das músicas do Secos & Molhados ganhou o público. “Era um momento agudo de repressão militar sobre os movimentos de oposição”, afirma Almeida. 

“E nesse cenário João Ricardo bota de pé um ovo de Colombo. Ele faz músicas para poemas já publicados, que estavam nos livros escolares. Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Solano Trindade. E com eles põe temas importantíssimos em circulação.”

O disco que leva o nome da banda chega em alguns meses à marca de 1 milhão de LPs vendidos. O grande nome do mercado era então Roberto Carlos, que liderava as paradas vendendo cerca de 300 mil discos por ano. Numa obra que mistura rock inglês, fado e música brasileira, várias faixas vão às rádios —“Sangue Latino”, “O Vira”, “Rosa de Hiroshima”, “Primavera nos Dentes”, “Mulher Barriguda”.

“Aparece o Ney na TV com aquela voz e o elemento teatral, roupa, maquiagem, gestual”, conta Almeida. “O Chico Buarque se apresentava de terno. O Ney com peito nu, maquiado, a dança andrógina, isso é um petardo. É como se você usasse telefone de disco e de repente caísse um smartphone de última geração na sua mão”, brinca o autor.

Capa de disco da banda "Secos & Molhados", de 1973 - Reprodução

A capa do disco é impactante. O fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues criou a imagem de uma mesa pronta para a ceia com produtos de mercadinhos, chamados de “secos e molhados”, e as quatro cabeças dos músicos maquiados servidas, uma em cada prato. Embora apareça na capa, o baterista Marcelo Frias depois não aceitou ser integrante fixo do grupo, permanecendo como músico contratado.

Miele e Ronaldo Bôscoli, veteranos da noite carioca, eram responsáveis pela escolha de números musicais para o “Fantástico”. Gostaram tanto da capa que indicaram o grupo sem ouvir o disco. Miele contou depois que ficou aliviado quando percebeu que a música era muito boa.

No Natal de 1973, as vendas estouraram. A gravadora Continental precisou derreter discos de seu estoque para conseguir vinil suficiente para prensar mais “Secos & Molhados”.

Ninguém da intelectualidade musical da época falava sobre a banda. Segundo Almeida, porque eles incomodavam.

“Havia um silêncio em cima do sucesso deles. As canções do Secos & Molhados são mais revolucionárias do que todas as músicas que o Chico gravava na época, como efeito de luta política. Na questão comportamental, a tropicália quis mexer em muita coisa, mas o Secos & Molhados o fez de forma radical. O grupo colocou um homem cantando músicas sobre liberdade, de peito nu e tapa-sexo, na sala da macarronada de domingo da família brasileira.”

O uso de poemas já publicados e também a imensa aceitação do grupo entre mulheres e crianças fez a banda passar incólume pela ditadura. “O apoio desses dois públicos desmobilizou qualquer reação oficial”, afirma Almeida.

O livro também conta como o clima entre os músicos da banda se deteriorou. João Ricardo quis pôr Ney e Gerson Conrad como músicos contratados. “Do jeito que está vou ser empregado do grupo que ajudei a criar. Essa merda eu não assino”, declarou Ney. Conrad também se recusou.

O segundo álbum foi gravado com Ney já decidido a deixar a banda. Em agosto de 1974, o clipe de “Flores Astrais”, único hit, foi lançado no “Fantástico”, seguido do anúncio da separação. O LP não fez o sucesso do disco de estreia.

Miguel de Almeida não concorda com a avaliação de alguns críticos, que escreveram ser o segundo álbum inferior ao primeiro, gravado às pressas. “De modo algum! Belíssimo disco, tão bom quanto o primeiro.

‘Tercer Mundo’, com trecho do escritor argentino Julio Cortázar, é fortíssima. É um disco incrível que se perdeu sob o impacto do fim do grupo.”

Ney e Conrad partiram para carreiras solo. João Ricardo insistiu em outras formações do Secos & Molhados, sem nunca repetir o mesmo sucesso. Lançou seis álbuns com o nome da banda até 2011, com um único hit, “Que Fim Levaram Todas as Flores?”, de 1978.

O livro de Miguel de Almeida disseca o maior fenômeno fonográfico da história do Brasil. Traz 60 fotografias, metade delas do fotógrafo e produtor teatral Ary Brandi. A obra tem registros que ele fez do show recordista de público no Maracanãzinho, em fevereiro de 1974, para 30 mil pessoas, das gravações do segundo álbum e da última apresentação do trio, na Grande São Paulo, em julho de 1974.


Primavera nos Dentes - A História do Secos & Molhados

Autor: Miguel de Almeida. Ed.: Três Estrelas. 376 págs., R$ 69,90. Lançamento hoje (13), às 19h, na Casa Folha, durante a Flip, em Paraty (RJ), onde Ney Matogrosso e Miguel de Almeida participam de debate 

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