Clássico do 'trip-hop' dos anos 1990, álbum 'Dummy', do Portishead, faz 25 anos

Geoff Barrow e Adrian Utley contemplam sua criação e explicam como acham que o álbum deveria ser ouvido

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Christopher R. Weingarten
Nova York | The New York Times

Na metade de 1994, quando a garotada do rock alternativo americano chutava lama ao som de Nine Inch Nails e Green Day, "Dummy", o álbum de estreia do Portishead, um grupo vindo de Bristol, no Reino Unido, chegou como um nevoeiro repleto de climas.

Embora sua origem fossem técnicas de produção do hip-hop -"sampling", "scratching", criação de loops e caça a discos clássicos como referência, "Dummy" representava uma mistura diferente de referências "vintage".

O produtor Geoff Barrow usou "samples" da trilha sonora do polímata Lalo Schifrin para um filme de espionagem; o guitarrista Adrian Utley criou contrapontos que lembravam as guitarras de timbre metálico em composições de Enio Morricone; e a cantora Beth Gibbons sussurrava melodias delicadas e fragmentos poéticos perturbadores ao estilo das canções de fossa.

Banda Portishead - Divulgação

A equipe que tocou o projeto no estúdio foi completada pelo engenheiro Dave McDonald. "Dummy" se tornou um sucesso rápido e inesperado, colocou um single no Hot 100 da parada Billboard e hit na MTV ("Sour Times"), recebeu o Mercury Music Prize e terminou por inspirar uma legião de imitadores.

O grupo se tornou parte de um movimento que os críticos viriam a definir como "trip-hop", em companhia de Massive Attack e Tricky, bandas que combinavam batidas metodicamente lentas de break a atmosferas enevoadas e melodias flutuantes.

Em uma reviravolta irônica, "Dummy" se tornou objeto de "sample" por muitos produtores de rap da década de 1990, entre os quais Timbaland, Opio (Souls of Mischief) e Q-Unique, do Arsonists. Sua influência persiste no som "vintage" estilizado de Lana Del Rey e nas batidas densas do rap encontrado no SoundCloud.

O Portishead lançou um segundo álbum em 1997 e depois fez uma pausa de uma década, retornando em 2008 com "Third".

Hoje, Barrow toca bateria para o Beak>, um trio pós-punk de som quebradiço, e é um compositor muito procurado de trilhas sonoras. Utley é guitarrista de estúdio e lança gravações com sua Guitar Orchestra, e Gibbons pode ser ouvida em uma gravação da Sinfonia nº 3 de Henryk Gorecki gravada com a Orquestra Sinfônica da Rádio Nacional Polonesa.

"Dummy" completa 25 anos, e dois de seus principais criadores falaram ao telefone sobre as origens e impacto do álbum. Abaixo, trechos editados dessas conversas.

 
Como e por que vocês obtiveram um som "vintage" nos loops?
Barrow: Nós éramos desesperadamente influenciados por gravações antigas, e também desesperadamente influenciados pelo hip-hop de seu belo país. Isso nos levava a gravar nossas sessões e depois transferi-las para vinil, e depois colocar o discos no chão do estúdio e andar por cima deles, e usá-los como skates.

Utley: Eu sempre suspeitei demais de gravações digitais, porque o que eu curtia de verdade era a Blue Note e as gravações fantásticas que começaram com Rudy Van Gelder [o engenheiro de som da gravadora]. Eu não gostava do som das coisas digitais,
 
E vocês também usaram equipamentos quebrados.
Barrow: Bem, era o equipamento que tínhamos [risos]. Não estávamos lá quando as gravações clássicas foram feitas, e por isso criamos uma espécie de visão sobre o motivo para que as coisas tivessem o som que tinham. Sabe quando você está em um carro e está ouvindo um toca-fitas, com um alto-falante quebrado de um lado, mas o som é bom para [palavrão]? Era isso que tentávamos reproduzir. Assim, passar o som por um amplificador quebrado certamente faria isso, ou nos colocaria no caminho disso. É fácil gravar instrumentos que soam como instrumentos. Mas ter esse desgaste, esse peso, e tudo mais, é isso que nos interessava.

Quando vocês fizeram essa gravação, nem mesmo eram uma "banda", tecnicamente. Quais foram as suas impressões sobre Beth Gibbons?
Barrow: Eu era um garoto que curtia hip-hop e produção de discos, e tudo que fazia era fumar 40 cigarros por dia e ficar grudado ao "sampler". Ela era adulta, e cantava coisas adultas.

Utley: Ela é muito, muito, muito, muito diferente do que você imaginaria. E incrivelmente tímida. Eu vim a conhecê-la lentamente, na verdade. E ainda estou aprendendo a conhecê-la, ela é complexa. Como no caso de todas as boas pessoas, você passa a vida aprendendo sobre elas, não é?

Vocês se lembram de quando encontraram a faixa de Lalo Schifrin ("Danube Incident") que usaram para "Sour Times"?
Barrow: Não é como se você saísse dizendo que aquilo ia ser um sucesso internacional [risos]. Você só pensa em usar aquilo num loop e ver o que acontece. O que foi realmente engraçado é que a introdução da faixa, que usamos no refrão, era mais rápida que o "groove". Por isso tivemos de desacelerá-la e dividi-la em pedaços. E na estrofe ela semitona um pouco, fica meio desafinada. É a "afinação hip-hop", não? É assim que funciona.
 
É engraçado que vocês curtem essas coisas confusas, discordantes, de som quebrado, e as pessoas...
Barrow:... fizeram do disco um álbum para tocar em jantares e festas.
 
Sim, exatamente.
Barrow: Olha, foi difícil aceitar. As pessoas compraram o disco e tornaram a banda grande. Mas é uma faca de dois gumes, não? Porque, ao mesmo tempo, nós odiamos isso. As letras de Beth, sua honestidade, seus sentimentos —acho que isso foi brilhante no nosso sucesso, porque significava que as pessoas ouviriam algo vindo de um ângulo real.

Nós curtíamos pessoas como o Nirvana, Polly Harvey, cantores-compositores tradicionais, que diziam a verdade sobre si mesmos. É bacana que as pessoas possam ouvir as histórias de Beth. Mas no sentido de as pessoas darem uma festa ou jantar e colocarem nossa música, eu adoraria chegar com um bastão de beisebol e esmagar a [palavrão] do conjunto de fondue.
 
Pessoas devem ter dito a vocês que usam a música do álbum para todo tipo de situação.
Barrow: Eu costumo responder que fico feliz por elas fazerem isso. Fico feliz por gostarem. Mas, para mim, essa é a pior coisa que alguém poderia dizer. Obrigado.
 
Você já disse algo assim a uma pessoa?
Barrow. Sim. Quero dizer, começo agradecendo. "Obrigado por comprar o disco". Depois, bem, "acho que você tem uma ideia errada sobre o disco. Talvez você devesse ir para casa e colocá-lo, e ouvir o mais alto que puder".

As pessoas certamente ouviam dub, e reggae, e batidas mais lentas em geral, na verdade, muito, muito alto. Se você coloca aquilo no aparelho de som, deveria ser ensurdecedor. E era nesse ponto que achávamos que estávamos. As pessoas iam ver Jah Shaka e era tão estrondosamente alto que espectadores defecavam nas calças na plateia. Não dava para levar um gravador e gravar o show, porque o som saía todo distorcido.
 
Quando "Dummy" explodiu, vocês tiveram de sair em turnê. E não eram uma banda tradicional.
Barrow: Não, não tínhamos intenção de tocar ao vivo. Eu e Beth éramos meio peixes fora da água, na verdade, porque nenhum de nós tinha feito uma turnê antes. E para agravar as coisas, o sucesso da banda e as entrevistas realmente eram um peso para mim.
 
Como isso o afetou na época?
Barrow: Não se falava muito em questões de saúde mental, então, a menos que você tivesse perdido totalmente o rumo. Eu tive problemas de saúde mental desde criança. Ficava doente o tempo todo. Sofria de bulimia. Sentia muita ansiedade. E assim, quando chegamos ao segundo disco ["Portishead"], 1997], eu estava completamente destruído.

Capa do CD 'Dummy', de Portishead - Divulgação

As canções de "Dummy" terminaram sendo usadas em muitos filmes.
Barrow: Filmes horríveis, é. Mas a coisa é que jamais quisemos trabalhar com marcas pouco éticas. Todos conseguimos ganhar bem a vida com a música. Não precisamos usar uma empresa de moda, ou de petróleo ou gasolina, ou quem quer que esteja basicamente esmagando os pobres e o planeta, e ceder nossa música a eles. Assim, tínhamos um sentimento forte quanto a isso. Rejeitamos literalmente dezenas de milhões de libras, pelo que sei. Alguém precisa dizer "não", em algum momento, e muita gente não o faz.

Mas quanto a filmes, nossas regras eram mais abertas. Desde que eles não tentassem fazer Beth cantar uma canção sexy, o que sempre acontecia com "Glory Box". Sempre aparecia um produtor dizendo que queria usar "Glory Box" em tal cena. Perguntávamos se a cena era de sexo, e eles diziam que era sexy. Aí dizíamos "não, obrigado".

Utley: Acho que recusamos provavelmente 95% das coisas que as pessoas pediam que fizéssemos. Algumas passaram sem que percebêssemos, na verdade. Vi um filme de Nicolas Cage chamado "O Senhor das "Armas". Eu estava assistindo ao filme no cinema e havia basicamente uma cena de sexo acompanhada pelo meu solo de guitarra em "Glory Box". Minha namorada perguntou se eu tinha liberado aquilo, e eu respondi que achava que não. Fui correndo ligar para nossa empresária, e ela respondeu que sim, eu tinha aprovado. Isso passou por nós sem nem percebemos que diabo fizemos.
 
As pessoas parecem gostar de fazer sexo ouvindo esse disco.
Barrow: Não sei, porque eu nunca fiz.

Tradução de Paulo Migliacci

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