Descrição de chapéu The New York Times Moda

Estilistas trazem dúvidas levantadas pelo brexit para a Semana de Moda em Londres

Temporada refletiu sobre o significado de ser britânico com a possível saída da União Europeia

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Vanessa Friedman
The New York Times

O que significa ser britânico? Que cara isso tem? Não há maneira de contornar essas questões, para qualquer pessoa do Reino Unido no momento, qualquer pessoa vivendo à sombra do prazo final —o primeiro-ministro assim jura— para o brexit, em 31 de outubro.

Elas se sobrepõem a tudo mais, mesmo o ativismo ecológico. "Devolved Parliament", de Banksy, um retrato da Câmara dos Comuns cheia de chimpanzés, vai ser exibido pela primeira vez e já tem um leilão marcado. Os executivos financeiros foram instruídos a manter as malas prontas, caso tenham de se mudar para Frankfurt sem aviso.

E os estilistas? Os estilistas, presos a uma temporada de moda que se inicia semanas antes do dia do brexit, e na qual devem exibir roupas que serão usadas depois dele, estão extrapolando.

O ponto da moda é cristalizar identidades, dar a indivíduos as ferramentas para expressar quem são. Mas se você não sabe quem é, porque quem você é hoje (e aquilo de que você é parte) e quem você pode ser dentro de um mês (e aquilo de que você não será parte) são diferentes, o melhor que se pode fazer é ajudar as pessoas a passar pelo momento atual. Ajudá-las a processar o que está ocorrendo.

Não há respostas simples, como sabe Jonathan Anderson. Assim, o principal acessório da coleção JW Anderson é um top de fios de brilhantes que lembra um loop de Moebios e pode ser enrolado e desenrolado como a usuária preferir. Como um sutiã para ser usado do lado de fora da roupa, em um círculo sem começo ou fim que parece carregar consigo quem o usa.

A peça veio acompanhada por vestidos longos e pregueados de jérsei, sem uma manga, cercados nos quadris por um cinturão de pedrarias. A segunda manga tem um corte que exibe o braço e flui solta para trás.

O top também foi usado sobre camisas acompanhadas por calças de harém; sobre uma fluida capa prateada de super-herói e foi espelhado em cortes circulares nos quadris dos vestidos, ou em enfeites pouco acima da bainha de sobretudos; e incorporado a xales com franjas e vestidos de mohair.

Anderson citou a artista canadense Liz Magor como influência e a maneira pela qual ela usa seu trabalho para fazer com que as pessoas repensem temas e objetos da vida cotidiana (abrigo, história, sobrevivência). Mas é difícil imaginar que possa existir uma representação melhor —ou mais glamorosa— do loop contínuo de recriminação, dúvidas e desculpas que circula no éter.

Há muito simbolismo em circulação. A maior tendência da semana foi a de uma silhueta que lembrava uma linda... barraca. Um espaço seguro feito de tecido no qual buscar refúgio contra o momento. Para ocultar não o organismo político, mas só o corpo. Hussein Chalayan chegou a inserir paus de barraca em suas chemises topográficas com estrutura cruciforme.

modelo desfila na passarela
Desfile da grife Richard Malone na Semana de Moda de Londres - Xinhua/Han Yan

A moda muitas vezes recorre às formas mais óbvias de vestimenta quando proteção está envolvida: o traje militar com protetores de ombros. Os novos volumes apresentados eram, de muitas maneiras, uma proposição mais interessante.

As saias estão mais baixas, em muitos casos roçando o chão, como se fossem uma cauda ou memória que segue o vestido; as mangas se estendem para além dos pulsos e obscurecem as mãos ou incham para proporções exageradas, absurdas; há hectares de tecido envolvido. Para uma temporada de primavera-verão, o foco de forma alguma estava em expor.

Em lugar disso, havia vestidos que ocupavam espaço, como Richard Malone escreveu sobre sua linha de repleta de franzidos e de construção complicada, com ombros muito largos e curvas laterais grandiosas inspirada por conversações com sua avó sobre a classe trabalhadora e sobre a busca de reconhecimento.

Ele entrou na passarela para receber aplausos usando uma camiseta contendo um palavrão seguido pelo nome "Boris". Vestidos que ofereciam uma cobertura como que nebulosa, voando em torno do corpo como o nevoeiro, na linha da Roksanda.

Vestidos que aplicavam narrativa à fantasia, como na ode de Erdem Moralioglu à atriz italiana Tina Modotti, que se tornou primeiro fotógrafa e depois ativista, e incluía silhuetas vitorianas clássicas. 

Golas altas, colarinhos de babados, em estampas altamente coloridas; calças de seda longas, frouxas, e túnicas de seda; xales com franjas complicadas (franjas também são uma tendência) e um vestido para a noite em brocado verde esmeralda e com camadas triplas —tudo isso uma manobra muito elaborada e luxuriantemente colorida de cobertura.

Certamente havia exceções: Christopher Kane, cujo desfile, "Ecosexual", foi um dos poucos a tratar de frente a crise ambiental, graças a estampas em silk-screen de campos de flores campestres, e vestidinhos coloridos com enxertos de silicone que se pareciam um pouco com versões pervertidas das orquídeas da pintora Georgia O'Keeffe.

Mas mesmo Victoria Beckham, antiga acólita dos vestidos apertados, mudou de posição e apresentou vestidos que pendiam do corpo como batas de artistas e flutuavam dos ombros aos tornozelos sem restrições.

E quando não se tratava de vestidos, havia camadas: suéteres de gola olímpica sob blusas abotoadas sob blazers de lapelas largas ao estilo da década de 1970, em estampa xadrez, acompanhados por calças boca de sino ou saias estampadas e pregueadas que se estendiam até abaixo dos joelhos. Tantas delas. De interpretação, decisão, potenciais desfechos. Que Beckham as tenha feito parecer menos pesadas e mais cool é digno de crédito.

Ainda que elas raramente sejam usadas com tanta leveza, ou nuanças, quanto na coleção de Simone Rocha, em peças de organza combinada a renda, combinada a algodão, combinada a ráfia, combinada a lantejoulas, combinada a porcelana de Delft (e ainda mais coisas, mas isso basta para que você faça uma ideia), em casacos que parecem bolos de mil folhas, vestidos e calças pregueadas, enraizados em tradições e mitos irlandeses desaparecidos, bem como nos interiores de grandes mansões.

Generosas em escala, repletas de detalhes humanos, as peças ofereciam muita textura, em todos os sentidos do termo. E elas exploram uma vertente de revisionismo histórico que a moda costuma amar mas se tornou mais consequente agora que estamos diante de um novo ponto de inflexão, que talvez tenha tomado sua forma mais evidente na coleção de Riccardo Tisci para a Burberry.

Faz um ano que Tisci chegou à grife que sempre se posicionou como a casa definitiva de moda para o estilo de vida britânico —um posicionamento que ele pretende manter. Essa é uma grande responsabilidade, consideradas as circunstâncias atuais; uma posição complicada a reivindicar.

Considerando o que está em jogo, Tisci disse depois do desfile ter dedicado suas duas primeiras coleções a estabelecer o que definiu como o "alfabeto" da Burberry; esta foi sua primeira tentativa de usar as variáveis para montar uma nova história.

Desfila da Burberry na Semana de Moda de Londres - Tolga Akmen/AFP

Assim, usando suas letras —A é para estampas animais; S é para echarpes; T é para sobretudos; V é para origens vitorianas, e assim por diante—, ele produziu uma colagem que conta uma história de opostos. A rainha e rebeldes, aristocracia e juventude.

Havia menos bege e mais jérsei cinza. Em lugar do cavalo da Burberry, surgiu um novo elenco de gatos selvagens e animais de grande porte em seda. As camisas tinham colarinhos com o logotipo da Burberry, e echarpes sobre os ombros e mangas. As bainhas foram modificadas de modo a fazer de uma blusa uma jaqueta. Havia muitos cortes na área das coxas das saias para criar um efeito de minissaia na frente e saia longa varrendo o chão nas costas.

Algumas ideias fantasiosas, alguma elegância formal, pares de calções de rúgbi frouxos, peças para clubes infantis. Grafitos em branco e preto como "listras de zebra 'streetwear'", como descreve Tisci, combinados a xadrez em branco e preto. No final, vestidos formais com transparências e mangas bufantes, acompanhados por camisetas caneladas e sem mangas ou collants pretos.

Era uma coleção de estilo claro, que trazia referências e mostrava progresso gradual, mas ainda assim a sensação era a de olhar para um quadro pintado seguindo os números. Os denominadores comuns eram simplistas demais e a compreensão do legado da marca superficial demais.

Richard Quinn brinca mais ou menos com os mesmos clichês da realeza e do punk, mas o faz com mais humor e menos respeito: rosas alimentadas com esteroides, babados sobre látex; roupões formais da era de Cromwell em lilás explosivo. O resultado é menos abrangente mas mais divertido, e responde ao que Quinn define, nas notas sobre seu desfile, como "o pesadelo da realidade".

Se algo se tornou claro nos últimos meses é que o que significa ser britânico hoje envolve muitas complicações e emoções profundas. Repleto de histórias escritas pelos vencedores e que talvez precisem ser reescritas, e medo e paixão e esperança sobre o que um dia foi e um dia será. Perturbado pela consciência de multiplicidades.

Talvez isso não possa acontecer antes que saibamos exatamente o que vai acontecer. Enquanto isso, a crise de identidade começa a desenvolver um look próprio.

Tradução de Paulo Migliacci

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