Descrição de chapéu Filmes

Diretor Karim Aïnouz usa crueza da dor para temperar melodrama sobre machismo

Candidato brasileiro ao Oscar, 'A Vida Invisível' tem Fernanda Montenegro no elenco e ganha sessão de gala na Mostra de Cinema de SP nesta sexta (18)

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Díptico com retrato de Fernanda Montenegro nas filmagens de

Díptico com retrato de Fernanda Montenegro nas filmagens de "A Vida Invisível" e detalhe do cenário Bruno Machado/Divulgação

São Paulo

​​Pai, amante, marido, filhos. Os homens que entram e saem da vida das irmãs Eurídice e Guida Gusmão no Rio de Janeiro dos anos 1950 são ora cruéis, ora meros paspalhões —raras vezes gentis. E ceifam um a um os sonhos das duas, condenadas a existências separadas.

A trama de “A Vida Invisível”, aposta do Brasil para o Oscar e exibido no Theatro Municipal nesta sexta (18), em sessão de gala da Mostra de São Paulo, é velha conhecida de seu diretor, Karim Aïnouz.

O cineasta já a tinha ouvido muitas vezes, da boca da mãe, da avó, das tias-avós que o criaram no Ceará.

“Eu sou meio Chico”, afirma o diretor, em referência ao filho de Guida, abandonado pelo pai no início do longa. Como ele, o diretor de “Madame Satã” e “Praia do Futuro” passou a infância sem uma figura paternal —o pai, argelino, morava na França—, em uma organização que já descreveu como um “patriarcado sem homens”.

Foi dessas mulheres oprimidas pelo machismo, condenadas por trabalhar fora e desiludidas com o amor romântico que ele se lembrou quando ganhou de presente o romance “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, do produtor Rodrigo Teixeira, da RT Features, há quatro anos.

Aïnouz tinha acabado de perder a mãe. Adaptar o livro foi então “fazer um filme sobre ela, mas sem fazer um filme sobre ela”, diz.

Mas que os fãs do romance não esperem encontrar suas páginas transpostas para as telas.

Se no livro o talento de Eurídice dá e sobra para a música, a cozinha, a costura —basta o marido, Antenor, proibir uma atividade para a moça brilhar na próxima—, no filme a protagonista Carol Duarte passa dia e noite ao piano enquanto o marido infantiloide interpretado por Gregorio Duvivier bufa em seu pescoço.

Mais do que isso, o tom faceiro e cronístico de Batalha dá lugar a um melodrama que segue à risca a cartilha do gênero.

Nele, a impulsiva Guida (Julia Stockler) se apaixona por um marinheiro grego, foge de casa e engravida dele. Ao retornar, é expulsa da família pelo pai, que ainda mente sobre o paradeiro de Eurídice, numa farsa que se arrasta por anos a fio.

“A Martha [Batalha] outro dia me escreveu muito preocupada porque tinha dito numa entrevista que uma das grandes diferenças entre livro e filme é que eu era muito cruel com os personagens”, ri Aïnouz.

“O livro tem uma leveza, e consegue contar a dor através dela. Mas para mim era importante que, no cinema, sentíssemos de fato a dor dessas mulheres. Não no sentido de vitimizá-las, mas de ser
justo com o que elas viveram."

Essa crueza se reflete nos corpos dos personagens. Naquele Rio pré-ar-condicionado, os personagens estão o tempo inteiro suados, e manchas de transpiração se espalham por suas roupas —Aïnouz diz que só gritava ação depois de todo o elenco ganhar um borrifo de água.

A carolice dos melodramas clássicos também dá lugar a pele, peitos e até um pênis à mostra, como em uma das cenas mais emblemáticas do filme, que mostra a desastrada e lancinante noite de núpcias da personagem-título.

“É um filme íntimo, uterino, vaginal”, descreve Fernanda Montenegro, que faz uma ponta de luxo como Eurídice hoje. “O que mais admiro nele é que não é panfletário, demagógico.”

Foi justamente esse objetivo de conseguir conversar também com quem não é feminista que levou o diretor a adaptar o romance na direção de uma tradição que, por aqui, se popularizou nas telenovelas.

“Me interessava muito falar sobre questões políticas importantes, sobretudo a condição da mulher, por meio de um gênero que pudesse não ser ideologizado a princípio. E o melodrama é produtivo por isso”, explica Aïnouz. 

“Ele é físico, usa a emoção. Você não sai da sala de cinema refletindo de forma analítica.”

O gênero também acabou sendo um diferencial na corrida pela indicação a melhor filme internacional do Oscar.

Para alguns dos participantes da comissão brasileira que elegeu o filme para a vaga do país —ele disputará com outros 92 títulos um lugar entre os dez da categoria—, o formato tem mais chances de agradar à Academia do que seu maior concorrente, o faroeste distópico “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

Os dois conquistaram importantes prêmios no Festival de Cannes deste ano. O reconhecimento destes e de outros títulos lá fora acontece, no entanto, em um momento em que o cinema é alvo recorrente do presidente Jair Bolsonaro.

A conjunção desses fatores levou Aïnouz a encarar com uma seriedade especial a campanha pelo Oscar.

“Acho que neste ano temos a obrigação de chegar o mais perto possível dessa nomeação, para provar que o que foi feito até agora está dando certo”, diz.

Enquanto isso, trabalha no próximo projeto, um documentário sobre o pai em que investiga sua conexão perdida com a Argélia e retrata os movimentos juvenis que hoje tomam o país.

“Com essa onda conservadora no Brasil, fui procurar um lugar para respirar, que é essa história de um dos primeiros países do mundo a se libertarem do colonialismo.”

Em seu décimo longa, Aïnouz está se voltando para si mesmo? “Estou atrás de aventuras”, responde.

Filmes da Mostra na corrida pelo Oscar

 
  • 'Honeyland': O documentário da Macedônia do Norte segue a última criadora de abelhas nômade do país
  • 'Parasita': Uma família semimiserável se infiltra na mansão de um casal rico no longa sul-coreano que venceu a Palma de Ouro e é o favorito ao prêmio hollywoodiano
  • 'System Crasher': Exibido no Festival de Berlim, o longa alemão acompanha uma menina com problemas de comportamento que quebra todas as regras para voltar à guarda de sua mãe biológica
  • 'O Paraíso Deve Ser Aqui': O palestino Elia Suleiman viaja e encontra diversos paralelos com seu país natal nesta produção que recebeu menção especial do júri em Cannes

Veja salas e horários dos filmes em 43.mostra.org

 

A Vida Invisível

  • Quando Sexta (18), no Theatro Municipal (pça. Ramos De Azevedo, s/n), às 20h30; sexta seguinte (25), no Noitão do Petra Belas Artes (r. da Consolação, 2423), às 23h30. Estreia em 31/10
  • Elenco Carol Duarte, Julia Stockler, Fernanda Montenegro, Gregório Duvivier
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção Karim Aïnouz

 

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.