Dez anos depois de colar olhos gigantes em favela do RJ, artista JR volta à cidade

Uma das forças do artista é ficar fora da política, diz o parisiense, que expõe em galeria carioca

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'The Ballerina in the Containers', trabalho de JR

'The Ballerina in the Containers', trabalho de JR Divulgação

Rio de Janeiro

Em junho de 2008, uma selvageria brasileira pior que as exibidas nos filmes do cineasta americano Martin Scorsese virou notícia na França e no mundo todo.

Três jovens do morro da Providência, no Rio de Janeiro, foram levados a um quartel por desacato e, depois, entregues por 11 militares do Exército a traficantes do morro da Mineira. Espancados, torturados e mortos com 46 tiros, seus corpos foram achados num lixão um dia depois. Um deles, de 17 anos, era estudante.

O artista parisiense JR, ou Jean Renné, tinha 25 anos, um a mais do que o mais velho dos rapazes assassinados, e a história o chocou profundamente. Na verdade, a notícia o transformou, uma vez que, alguns dias depois, ele estava ao pé do morro da Providência, sem conhecer ninguém, acompanhado de um amigo que falava português.

Uma mulher se aproximou do estrangeiro de óculos escuros e chapéu, acessório que ele nunca tira, e gostou quando ele se disse artista. “Era a Rosiete”, lembra ele.

E assim JR acabou apresentado às mães, avós e famílias dos três jovens. Fotografou os olhos dessas famílias e os imprimiu em preto e branco. Colou as imagens, como cartazes de lambe-lambe, em 40 fachadas da comunidade.

Enorme, cada olho era do tamanho de uma casa. E, lá de cima, eles pareciam mirar o Rio, que, por sua vez, pareceu surpreso ao notar a existência daquela favela. Efêmeras, suas obras de grande escala desaparecem depois da primeira chuva forte.

Ele conversa agora com este repórter no mesmo morro, onde fundou, há dez anos, a Casa Amarela, espécie de escola de arte para as crianças da região e de profissionalização para os adultos.

“A comunidade ficou muito orgulhosa daquele trabalho e abriu as portas para mim”, diz JR. Ele não sabia se seria aceito, já que havia uma gangue de tráfico que dominava o lugar. Na verdade, ainda há, e a casa às vezes amanhece com buracos de bala nas paredes, que são sempre tampados.

Nesses 11 anos, muita coisa aconteceu com JR, que se tornou um artista famoso. Em 2010, ele recebeu um prêmio da fundação TED, depois de fazer uma palestra no evento. Em 2015, dirigiu o curta “Ellis”, com atuação de Robert De Niro, sobre a ilha de Nova York onde chegavam os imigrantes para triagem. Em 2016, instalou fotografias gigantescas de atletas em andaimes, do tamanho de prédios, no Rio, por ocasião da Olimpíada. Em 2017, ganhou um prêmio em Cannes com “Visages Villages”, uma parceria sua com a cineasta francesa Agnès Varda. E, no ano passado, o mesmo filme foi indicado ao Oscar de melhor documentário.

Como se vê, JR está com tudo. E abre, nesta semana, sua primeira exposição individual no Brasil, na galeria Nara Roesler, no bairro de Ipanema. Algumas litogravuras suas saem por € 2.000, ou R$ 9.300, mas obras maiores, ainda que longe do tamanho daquelas coladas ao ar livre, atingem cerca de € 150 mil, ou R$ 700 mil. 

Grupos de remos, uma alusão a refugiados e imigrantes, receberam a aplicação fotográfica característica de JR, mas a imagem inteira pode ser vista só de certo ângulo, quando a fotografia retalhada se completa. 

Também há desdobramentos da série Giants, das Olimpíadas, com registros daquelas imagens em quadros.

O francês vê o mercado de arte como parceiro indispensável para a continuidade de seus trabalhos. “Não me associo com marcas ou patrocinadores, então tudo o que faço é financiado com a venda de meus trabalhos nas exposições em galerias ou museus, já que os projetos maiores são gratuitos”, diz ele, que já instalou murais em vagões de trens, pontes ou muros nos Estados Unidos, na Europa, no Oriente Médio e na África.

A Casa Amarela, que completa dez anos agora, está em festa, com um festival franco-brasileiro feito em parceria com o Planeta Ginga. Lá, haverá exposição de fotografias, exibições de filmes, mutirão de grafite, dança afro, hip-hop e batalha de break.

Quando está no Rio, JR dorme em uma escultura que criou, uma lua amarela instalada na laje da casa e que fica a cerca de 20 metros acima dela. “Todos os artistas que vêm dar aulas ou oficinas dormem aqui em cima”, comenta ele.

No lugar, aonde se chega por duas difíceis escadas de metal, cabe só um colchão de casal e uma pequena biblioteca. Para fazer xixi no meio da noite, no entanto, é preciso descer e depois subir 
tudo de novo.

Seu próximo trabalho será em Cuba, onde fotografará pessoas de todas as partes do país para montar um mural de rostos em Havana. E seu último foi na penitenciária americana Tehachapi, onde colou, no teto, uma imagem enorme de um grupo de prisioneiros do lugar. Em seu aplicativo, JR:murals, é possível ver a foto e clicar em cada um deles para ler sua história e ouvir o detento falar de sua vida.

Ele, no entanto, rejeita o rótulo de ativista urbano e diz ser só um artista. “É curioso, pois sempre sou questionado sobre isso. Porque quando comecei eu era um grafiteiro ilegal, um vândalo, sabe? Nem imaginava que se podia viver de arte. Eu nunca estudei arte, então só depois descobri que o que eu fazia era arte.”

“Veja, o ativismo traz respostas. Ele diz: isso aqui deve cair, aquilo deve subir. A arte não traz respostas. Quando fiz uma colagem de um bebê olhando por sobre o muro da fronteira do México com os Estados Unidos, eu não digo se devemos derrubar aquele muro, ou fazê-lo mais alto. Eu só lanço a questão de que devemos pensar sobre as pessoas vivendo lá e como parece estúpido aquele muro para um bebê gigante.”

Sobre a política praticada por governantes, JR não se interessa, mas sabe que o que faz é altamente político.

“Acho que uma das forças do artista é ficar fora da política. Ele deve lidar com as pessoas diretamente. E se a arte não muda o mundo, ela transforma o jeito como as pessoas veem o mundo. Aqui na Providência, por exemplo, aquela obra fez mudar o modo como os moradores olhavam para as suas próprias casas.”

JR

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