Descrição de chapéu Livros

Novo livro de Ruy Castro dá ares épicos à modernidade do RJ dos anos 1920

'Metrópole à Beira-Mar' reconstitui a história dos que circularam pela cidade na época

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Rio de Janeiro

“Metrópole à Beira-Mar” é um puzzle com dimensão de epopeia. A impressão é que, no Rio de Janeiro dos anos 1920, fazia-se de tudo e mais um pouco.

Tudo de uma maneira diferente do que sucedera até então. Todos eram modernos até a medula. Mas não ligavam para isso, tampouco sabiam disso, pois estavam mais interessados em viver a vida real, praticar sem distinção a alta e a baixa cultura —o que mais tarde seria uma marca carioca que se intensificou na época. Respirar aqueles ares marinhos era a senha da modernidade urbana.

“Foi meu livro mais difícil de fazer. Eu tive de reconstruir uma cidade, repovoar uma cidade. O que eu faço habitualmente são biografias, seguindo uma espinha dorsal: o cara nasce aqui e morre ali. Mas dessa vez foram centenas de minibiografias”, conta Ruy Castro, que levou quatro anos para concluir a obra que chega nesta semana às livrarias.

Uma reconstituição histórica que se vale de um tsunami de informações, indo do inesquecível Carnaval de 1919 —que só de despojos rendeu 40 toneladas de papel, para alegria dos trapeiros, que negociavam a cem réis o quilo— à Revolução de 1930.

Em 1920, o Rio era a única cidade brasileira com mais de 1 milhão de habitantes e 6.000 automóveis “matriculados”. Havia tanta eletricidade no ar que as ideias —envolvendo um quase sem fim de atividades na literatura, no jornalismo, na música, no teatro, no cinema, nas artes plásticas e gráficas, na arquitetura, na engenharia, na ciência, na praia, no futebol, na luta das mulheres por igualdade— passavam voando. Bastava esticar a mão para pegá-las.

Dá gosto citar o elenco que podia se cruzar por acaso na avenida Rio Branco ou na Cinelândia —a qual, aliás, deve sua existência àquela época: Adhemar Gonzaga, Bidu Sayão, Carlos Chagas, Carmen Miranda, Cecília Meirelles, Di Cavalcanti, Francisco Alves, Ismael Silva, J. Carlos, João do Rio, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Orestes Barbosa, Oswaldo Goeldi, Mario Reis, Pixinguinha, Procópio Ferreira, Roquette-Pinto, Sinhô, Villa-Lobos. Estes são só alguns entre os mais conhecidos da lista.

Outros, que permaneciam numa espécie de limbo, são resgatados. “É curioso que os personagens que parecem ter uma estatura maior são aqueles que, por um capricho ou outro, acabaram esquecidos, sem que isso tenha a ver com a qualidade do trabalho deles. Mas o destaque deve ser atribuído a eles próprios, porque se impuseram enquanto eu escrevia o livro”, afirma Ruy Castro.

São os casos de criadores que se desdobravam, dos quais se poderia dizer que eram “300, 350”: Raul Pederneiras (cartunista, ilustrador, pintor, professor, teatrólogo, compositor, escritor), Luiz Peixoto (letrista, teatrólogo, poeta, pintor, caricaturista, escultor), Álvaro Moreyra (poeta, cronista, jornalista, teatrólogo, ator) e sua mulher Eugênia (jornalista investigativa, atriz, diretora de teatro, líder feminista).

E mais: Adelino Magalhães, contista e inventor do “pensar tumultuoso” —um precursor do monólogo interior—, Agrippino Grieco, um ácido crítico literário, ensaísta, memorialista, Humberto de Campos, autor de um diário escandaloso, então um cronista obrigatório e hoje o mais sepultado de todos.

O poeta, ensaísta e diplomata Ronald de Carvalho surpreendeu o autor, a ponto de fazer uma pequena antologia de seus versos em parágrafos do livro. “Você não faz um movimento literário só com duas ou três estrelas e que, cá para nós, nem eram tão estrelas. Limaram o Ronald do modernismo. Lendo a poesia dele, que eu não conhecia, fiquei deliciado.”

Todas as terças à noite se abriam os salões da casa de Ronald de Carvalho no Jardim Botânico para um comício de ousadias, com leitura de poemas e trechos de romance e discussões políticas. 

Foi lá que, em novembro de 1921, levados pelo romancista Ribeiro Couto, paulistano radicado no Rio, deram as caras Oswald de Andrade e um desconhecido Mário de Andrade, trazendo o manuscrito de seu livro “Pauliceia Desvairada”. Mário precisava do aval de Ronald.

Alguns artistas deixaram a cidade para influir na famosa Semana. Di Cavalcanti, cria da Lapa, expôs em fins de 1921 a Paulo Prado, o empresário e produtor de café que incentivou o movimento, a sugestão de realizar uma série de saraus de arte moderna, com poesia, escultura e pintura. Di pensava em fazê-los no Rio, mas Prado bateu o martelo por São Paulo.

O aporte financeiro do então governador Washington Luís foi decisivo porque permitiu a presença no Theatro Municipal do único nome sem o qual, segundo Ronald de Carvalho, a Semana de Arte Moderna seria tudo, menos moderna: Heitor Villa-Lobos.

Em 1922, o maestro estava longe de ser um amador até nas mesas de sinuca. Tinha mais de 200 composições publicadas. “Música de graça é desgraça”, disse Villa-Lobos, que só viajou depois 
de combinado o cachê. Foi o único a recebê-lo.

Impressionante como as mulheres tinham vez e voz nos anos loucos do Rio. A poeta Gilka Machado era um fenômeno de popularidade. Enquanto os jovens lotavam seus recitais, a crítica mais conservadora —o conselheiro Ruy Barbosa e o ex-padre Antônio Torres— lhe torcia o nariz: “perversa,
imoral, sem valor, sem ideias, sem espírito e sem pudor”.

“Felizmente a Gilka tem sido reabilitada, assim como a romancista Júlia Lopes de Almeida. Mas vejo avaliações que partem de um erro: fulana sofria porque era uma mulher escritora num tempo em que a sociedade não aceitava isso. Se você falasse algo parecido para a Albertina Bertha, levava uma chicotada! Elas nunca foram discriminadas”, afirma Ruy Castro.

“Ao contrário, eram disputadas e valorizadas pelo mercado. Carmen Dolores foi uma das colunistas mais bem pagas do Brasil durante anos. A filha dela, Chrysanthème, escrevia na Crítica, de Mario Rodrigues, e publicou mais de dez romances. Tem havido uma vitimização dessas mulheres sem qualquer base na realidade. Inclusive agora surgiu uma história ridícula de que a Gilka Machado era negra.”

No livro, as invencionices são desconstruídas. A turma preferia as invenções.

Capas de livro e revistas da década de 20 - Reprodução

Revoluções culturais e científicas chegaram ao Rio dos anos 1920

Na Bolsa de Valores do Rio nos anos 1920, cabiam tanto os eventos oficiais como aqueles que se gestavam nas frestas da sociedade. Ruy Castro, colunista da Folha, aborda todos.

Montada no espaço aberto com a demolição do morro do Castelo, a “Exposição do Centenário”, em 1922, trouxe as tendências modernas que iam pelo mundo. Delegações de 14 países estiveram presentes. O povo afluiu em peso à programação —concertos ao ar livre, parque de diversões com cervejarias, sorteios de brinquedos para as crianças, visitas aos pavilhões, sessões de cinema.

Boquiaberto, o carioca foi apresentado ao telefone automático e a um rádio transmissor de 500 watts. Durante dez meses, foram realizados 29 congressos técnicos e científicos, com a divulgação de pesquisas, apresentação de novos conceitos e discussões sobre a necessidade de regulamentação de profissões. O pavilhão americano foi uma demonstração de poder, com metralhadoras, tanques, caminhões, locomotivas e navios.

Seis anos mais tarde, uma geração de negros e mestiços revolucionou a música popular. Vestidos com terno de linho branco, camisas de seda e chapéu Fedora, alguns deles chegavam de arma escondida na cintura ao Café do Compadre ou ao Bar Apollo, no Estácio.

Bamba que era bamba não trabalhava. Alguns se dedicavam à exploração de mulheres na zona do Mangue. Os mais chegados ao batente escolhiam ser lustradores de móveis, profissão valorizada porque uma disposição municipal mandava que eles só podiam trabalhar dois dias seguidos. 

Eles se chamavam Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Mano Rubem, Brancura, Baiaco, Mano Edgar, Heitor dos Prazeres, João Mina, Geraldo Vagabundo, Amor —e com eles o samba deixou de ser maxixe e ganhou novo ritmo, sofisticado, musicalmente redondo, sem arestas, ideal para desfilar nas nascentes escolas de samba.

O cantor Francisco Alves percebeu a onda, e só de Ismael Silva e Nilton Bastos gravou, às vezes entrando como parceiro, um conjunto de composições que estabeleceu o primado do samba como a música brasileira por excelência no século 20. Logo depois, Noel Rosa se juntaria à turma do Estácio. 

Em sua multiplicidade, “Metrópole à Beira-Mar” guarda semelhanças com outra obra do autor, “Ela é Carioca”. Lançada há 20 anos, é uma enciclopédia com perfis de figuras de Ipanema que influenciaram o comportamento do país.

A diferença é que o novo livro não é composto por verbetes, e sim por um texto corrido, dividido em capítulos temáticos. As sutilezas e as coincidências ligam com naturalidade um personagem ou um assunto a outros, as peças se encaixando como em um quebra-cabeça. 

A começar pela capa de J. Carlos, a iconografia é um espetáculo. No caderno de imagens e nas guardas, há fotos da época e dos personagens, capas de jornais, revistas e livros, selos de discos, cartazes e reclames de recitais e concertos, caricaturas, pinturas e até leques do Carnaval de 1919.

Só a bibliografia ocupa 22 páginas e a discografia, mais três. Muitos dos livros citados só tiveram uma edição —raridades até na Biblioteca Nacional.

“Os quatro anos em que passei trabalhando no livro foram os mais felizes da minha vida. Acabei descobrindo a minha própria cidade”, diz Ruy Castro.

Depois de tanto prazer e trabalho, o escritor vai escrever ficção —o romance “Os Perigos do Imperador”, que se passará no tempo de Pedro 2º e, claro, no Rio. “Metrópole à Beira-Mar” ainda dará filhotes —livros com melhores frases de João do Rio, Álvaro Moreyra e Agrippino Grieco.  

Metrópole à Beira-Mar

  • Quando Lançamento no Rio de Janeiro, na segunda (25), às 18h30, na Livraria da Travessa (r. Visc. de Pirajá, 572, Ipanema); e em São Paulo, na quarta (27), às 19h30, na Livraria da Vila (al. Lorena, 1.731, Jardim Paulista)
  • Preço R$ 79,90 (504 págs.)
  • Autoria Ruy Castro
  • Editora Companhia das Letras

Ruy Castro e o Rio

‘Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova’ (1990)
Reconstituição da vida cultural e sobretudo musical do Rio entre os anos 1950 e 1960

‘O Anjo Pornográfico’ (1992)
A vida de Nelson Rodrigues numa biografia que viaja pelo Rio dos anos 1910 aos 1980

‘Ela é Carioca: Uma Enciclopédia de Ipanema’ (1999)
Em 231 verbetes, descreve figuras e instituições cariocas de 1910 a 1970

‘Carnaval no Fogo: Crônica de uma Cidade Excitante Demais’ (2003)
Um retrato do Rio atual e de seu fascínio

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