Exposição no Rio exibe vida nas favelas sem estereótipos de violência e pobreza

Com fotografias feitas por moradores de nove comunidades cariocas, 'Favelagrafia 2.0' estará no MAM Rio até 8/12

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Rio de Janeiro

Ponha “Complexo do Alemão” no Google e note que, após os verbetes da Wikipedia sobre o agrupamento de favelas com mais de 70 mil pessoas na zona norte do Rio, aparecem notícias sobre “operação da PM”, “chacina”, “tiroteio” e “massacre”.

Tente a mesma coisa no sistema de buscas deste jornal e, das 15 vezes em que o lugar foi mencionado no mês de outubro, 12 dizem respeito a violência e segurança pública.

“Midiaticamente o Complexo do Alemão é muito massacrado”, afirma a fotógrafa Josiane Santana, que nasceu ali há 32 anos e continua morando na comunidade, agora com seu filho. “A narrativa é sempre de violência, tráfico, pobreza. É como se fosse só isso. Mas esse é o meu território. Minhas fotos retratam os artistas e também as vielas e os becos, os moradores invisíveis, esse lado riquíssimo.”

“Coisas maravilhosas acontecem por aqui, muita amizade, lealdade, mulheres guerreiras. Isso é muito comum dentro das favelas, tão esculachadas pelo poder público. E aqui tem pontos belíssimos. Vemos a Ilha do Governador, o Galeão, a floresta da Tijuca, o Cristo Redentor, parte da baía de Guanabara.”

Santana, uma ex-bancária, conseguiu viver da fotografia neste ano. E o empurrão para isso foi o projeto
Favelagrafia, que chega agora à sua segunda edição com uma exposição recém-aberta no Museu de Arte Moderna, o MAM,  do Rio de Janeiro, e que segue em cartaz por um mês.

São nove fotógrafos, cada um vindo de uma comunidade carioca, apresentando vídeos e fotografias que mostram esse outro lado de seus morros, “o lado potente, em contraposição ao carente”, como diz a apresentação da mostra.

Só um ou outro havia tido alguma experiência com fotografia antes de 2016, mas a maioria era bem crua quando a agência de propaganda NBS (No Bullshit) idealizou o projeto. A empresa escolheu nove moços e moças e os municiou com nove iPhones.

Um deles era o segurança Anderson Valentim, 35, do morro do Borel, na Tijuca, que passou sete anos vigiando um prédio abandonado do estúdio Herbert Richers, para que não fosse invadido. Depois da primeira reunião que teve com Aline Pimenta, diretora do departamento de marketing social da NBS, ele externou sua preocupação: “Acho que não estou preparado para isso que vocês querem”.

Mesmo assim, ele reuniu o sobrinho e amigos que costumavam tocar com ele —Valentim aprendeu sax na igreja evangélica com o pai— e os levou pelas vielas do morro com os seus instrumentos. Tirou uma série de fotografias. Então teve uma ideia que mudaria sua vida.

Pediu que os cinco ficassem descalços e pusessem as camisetas nas cabeças, uma imagem que remetia aos soldados do tráfico. À primeira vista, é isso mesmo que se vê. Na segunda olhada, porém, é possível notar que as armas reluzentes que seguram são saxofones, trombones e trompetes.

Valentim postou a imagem no no perfil @favelagrafia do Instagram na manhã de 13 de outubro de 2016 (ainda está lá) com a seguinte legenda: “Foto original: alguns lutam com outras armas. Projeto Favelagrafia está retratando nove comunidades da cidade através do olhar dos próprios moradores”.

Antes de cair a noite a fotografia já havia viralizado no mundo todo. Naquela madrugada ele diz ter respondido a mais de 400 pedidos de amizade no Facebook. Até celebridades repostaram —Jorge Aragão, Maria Rita, Glória Perez. O marido de Alicia Keys compartilhou. O rapper e ator Snoop Dogg postou em sua rede social. A foto e o projeto foram exibidos na CNN internacional.

Quando a primeira edição da Favelagrafia fez uma exposição no MAM carioca, essa foi a imagem usada como pôster do evento. Valentim conta que, durante duas semanas, deu entrevistas todos os dias.

A comunidade do Borel até se acostumou. Na semana passada, quando este repórter percorreu parte do morro ao lado de Valentim, os moradores brincavam: “Cuidado com esses jornalistas”.

“O morro atualmente está tranquilo”, diz o fotógrafo. “Nos anos 1990 foi muito difícil. Eu chegava da escola e tinha que ficar na padaria esperando os tiroteios acabarem.” 

Enquanto caminhamos pelas vielas repletas de pequenos comércios, atravessamos o rio Maracanã e subimos para uma quadra com telas de arame.

Ao lado, o rapaz mostra um hospital psiquiátrico desativado, na verdade caindo aos pedaços. Foi nesses lugares que ele gravou o vídeo de quatro minutos para a exposição, que conta a história de um menino negro albino amante de livros.

Hoje, Valentim é representado pela galeria TNT, no shopping Fashion Mall, em São Conrado, na zona sul.

Na semana retrasada, ele vendeu uma fotografia por R$ 700. Assim como Josiane Santana, Anderson Valentim tem conseguido viver só de fotografia. Ambos são chamados para cobrir eventos ou fotografar festas.

Ambos também lutam contra o estereótipo que o resto do Brasil tem de suas casas. Assim como os outros sete integrantes do projeto —Omar Britto (Babilônia), 33, Magno Neves (Cantagalo), 28, Jéssica Higino (Mineira), 26, Saulo Nicolai (Prazeres), 27, Joyce Marques (Providência),  23, Rafael Gomes (Rocinha), 26, e Elana Paulino (Santa Marta), 37.

Todos estão de saco cheio de verem a favela mostrada apenas nos noticiários policiais ou em filmes violentos como “Cidade de Deus”, de 2002.

“Sobre esse filme, eu tenho dois pensamentos”, diz Valentim. “O filme é muito bom. E traz uma realidade que não existe em nenhum outro lugar do mundo, mostra como a favela ali foi formada, então é importante. Mas é de um branco que gasta rios de dinheiro para ganhar outros rios de dinheiro. É sempre alguém de fora falando da gente.”

Isso, no caso, é o que o projeto Favelagrafia não é.

Favelagrafia 2.0

  • Quando Ter. a sex., das 12h às 18h. Sáb., dom. e feriados, das 11h às 18h. Até 8/12
  • Onde MAM Rio, av. Infante Dom Henrique, 85, Rio de Janeiro
  • Preço Grátis
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